24 de setembro de 2018

As misérias do processo

Uma meditação para a coragem talvez não possa ser diária. Diferente da covardia, que o homem médio há de cometer umas cinco ou seis por dia, a coragem pode passar meses, nos mais febris anos, sem mostrar as caras. Não é de espantar que por religião o homem prefira delegar a tarefa de ser corajoso: é hercúlea, rara e extremamente destrutiva. Suspeito que, mesmo entre os mais extraordinários e distintos entre nós, também ali a coragem fraqueja, cai bamba, pede bengala, ou urra como gado submetido ao ferrete. A humanidade, da pele pra dentro inclusive, é um projeto em andamento. E talvez justamente nesses momentos difíceis, em que os músculos da face jorram à luz suas feições mais escandalosas, quando a pele é toda flor, e qualquer lembrança abala o nosso horizonte mental — talvez justamente aí precisemos em maior medida de uma meditação para a coragem. Não sei bem se consigo esclarecer as condições especificíssimas dessa atividade, que tanto consiste numa crueldade inexorável, rimante do destino, quanto numa gentileza supremamente compreensiva, do seio universal o leite mais morno. Aqui, entre o fogo da tormenta de mil infernos e o néctar primaveril dos amantes, em algum lugar entre o Réquiem e a Nona — aqui nós devemos nos honrar diante de nós mesmos, ajoelhar diante do divino e com o mais calmo desespero: meditar. Nossas coragens! Onde estão? Onde estiveram quando delas fomos tão carentes? Por que nos abandonaste? E com o carinho de uma mulher devemos segurar o nosso rosto molhado, convulsivo, e começar a administrar nossa cura. Doce, muito docemente, trazendo à testa uma folha de hortelã, devemos nos esforçar para ignorar o que em nós há de diabólico, aquilo que de dentro nos inspira à destruição, o ardente suicida que à nossa mente habita: pois não há ser humano nesse maldito mundo — e eu digo isso com o sangue de minha perna riscada — que não tenha cometido na vida um gesto de grandeza corajosa. Nós somos o que somos. Para alguns de nós é esforço diário levantar, e quantos não são os que carregam em seus ombros e suas costas o peso do mundo — apenas uma fração dos quais se torna poeta, e no entanto todos, todos sem exceção, são merecedores do nosso carinho e do nosso amor. É claro que, ao falar dos outros, estamos falando apenas de nós mesmos, de toda a humanidade que existe numa gota de indivíduo. Quanta coragem não houve em labuta diária, em trabalho sobre trabalho, consciência depositada em miséria, a troco de traição e sofrimento, quanta dor não foi rasgada em praia de tristeza, quanto Imensurável não houve em uma conversa digna, um tomar à frente, um sacudir de corpo, da vida um puxar das rédeas, aurora depois de noite tempestuosa? Com cuidado, e com muito mais esmero do que eu seria capaz de descrever, talvez fechando os olhos brevemente (não para não ver, mas para mais facilmente olhar para dentro), devemos nos lembrar. Talvez não tenha sido hoje, nem ontem. Talvez nem mesmo nessa semana encontremos exemplo de uma coragem nossa. Ampliemos nossa busca, afrouxemos nossa vontade de estrangular, devolvamos aos nossos atos a dignidade que lhes é de direito: eu vi você acordando naquele dia que estava cansado; eu vi você falando naquela hora em que as conseqüências seriam menores se você tivesse calado, eu vi você lendo para o seu filho, jurando de amor, eu vi você estendendo o olhar a um amigo que precisava. Eu vi você escrevendo. Eu vi você desenrolando o tapete e sentindo a dor da sua postura heróica ou vajrando-se logo antes de entrar no dojo. Eu te vi orando por mim quando eu estava doente. Eu vi quando você lavou a louça para que seu filho não encontrasse a cozinha suja. Eu vi sua depressão te consumindo e vi sua resistência. Eu vi você tentando. Às vezes a grandeza se esconde; às vezes fechamo-lhe os olhos. Às vezes somos fracos. E às vezes desistimos. Tudo bem. Nada disso reduz meu respeito por você. Nada disso enfraquece a sua invocação da alegria, sua eterna batalha. Você já é divino. Adormeça hoje com os dentes des-cerrados, aceite essa luz que já é sua e abrace a certeza de que você é feito de coragem.

16 de setembro de 2018

Eu, por exemplo

Algumas pessoas só são piores que outras.