17 de maio de 2018

Numa pedra

"A forma como fazes qualquer coisa é a forma como fazes todas as coisas".

Unicidade

Mas haverá mesmo essa distinção entre estética e ética? Não é verdade que todo caminho define ao mesmo tempo uma direção e também uma forma de caminhar? Não são quase sinônimos? "Para frente" é uma direção ou um modo? Retidão é um alvo ou uma forma de contornar? Existe diferença entre um objeto e os contornos funcionais que o definem? A natureza afinal possui substrato?! Somos (aquilo) o que somos ou (a forma) como somos? Não é todo ser afinal — — adverbial? 

As estéticas são éticas. A breguice (pra dar o exemplo) não somente descreve, mas prescreve também. 

Tomar cuidado com armadilhas filosóficas! 

Historinhas

É possível ser cínico e responsável ao mesmo tempo? As responsabilidades precisam ser inventadas e, então, aceitas enquanto invenções. O mundo criou uma tabela de valores tacanha, inveterada, incrivelmente brega. Rejeitemo-la em bases estéticas, mas sem lhe esquecer as lições. 

16 de maio de 2018

Pai de rapina

Perenear nosso estilo é semelhante a acolhê-lo com grandes asas paternais. Protegê-lo, sim, mas também desafiá-lo, pô-lo à prova; alimentá-lo com música e silêncio, bem como avaliá-lo (com toda crueldade) e incentivá-lo a enfrentar a vergonha e o medo. Somo-lhe pais para o bem e para o mal. A tarefa da paternidade possui duração. Perenear um estilo, como a um espírito, é prepará-lo para a adultice, cultivá-lo em meio a bons hábitos e suficientemente alertá-lo para o perigo (quando não for possível fortalecê-lo). Nem toda poesia terá métrica. Que tenha então alma.

Rio

O caminho de nossa prosa deve tender ao eterno. Não como em Kant, segundo quem deve-se fingir que o eterno já está presente, mas com atenção sincera ao gerúndio. Devemos perenear nosso estilo. Isso significa em primeiro lugar reconhecer que ele não é perene, que ainda não pertence ao panteão divino — e talvez nunca venha a pertencer. Mas isso não nos deve preocupar. Como as abelhas de Rilke, num constante movimento de tornar divino o terreno: do mel do visível ao favo do invisível. O que há de mais eterno, de mais constante, é o devir, esse contínuo  tornar-se da Natureza, uma incansável indisposição à imobilidade. O cansaço é o  Seu oposto: vontade de ficar parado. Por isso fazem parte de nosso caminho fluvial os momentos de laguidão, para que nos restauremos e possamos voltar ao nosso ser-rio (cuja intensidade chega a matar). Devemos descansar antes de sermos consumidos pela vontade de ficar parados. Uma das maiores sabedorias é descansar na hora certa. 

10 de maio de 2018

Orgulhinhos balsâmicos

Sugestão do que fazer diante das falhas dos outros: concentrar-se nas próprias virtudes. 

8 de maio de 2018

Palavras descansadas

Superabundam textos tristes. Nenhum espanto — os alegres costumam estar ocupados. Lembremos que dançar cansa! Mas não desanimemos: a alegria está aí (bem como o cansaço, é verdade). A nós, escritores, talvez caiba uma responsabilidade um pouco maior, que é a de comunicar a alegria com frequência mais representativa do mundo real. Afinal, são os poetas que erguem os alicerces emocionais da civilização. É um imperativo científico reconhecer a existência da alegria bem como a do sofrimento. Ensinemos às próximas gerações a capacidade de ter prazer! — e façamo-lo com desenvoltura, elegância, ritmo. Sorrir! — com o corpo, com as palavras, com a própria vida. Dançar. Transar. O mundo não é apenas terrível. Vale a pena repetir. O mundo não é apenas terrível.

4 de maio de 2018

Ombros de poeta

O que vos tento dizer, meus caros, o que de minhas ações e sofrimentos é consequência viva, esta verdade da qual sou testemunha admoestada, da qual mil vezes tentei fugir, que se prende a minh'alma como sanguessuga benigno, bálsamo venenoso, molho à minha sopa de pedras conceituais, aquilo que mais profundamente me tornei, fui tornado: — sobrevivente! Minha crônica de mim mesmo não é exemplo, mas é espécime. Sou filho da natureza, de alguma natureza, e estou vivo. Mais do que isso: por tanto que eu tenha sofrido, e por mais que eu tenha tão compreensivelmente amaldiçoado os deuses e desejado qualquer outra coisa que não o meu fardo e meu fado e meu fato — — de tudo isso fiz alguma coisa e sobrevivi nem que alguns anos. E de novo e de novo, e tanto mais forte quanto fundo quedei, levantei. Como se houvesse sempre sorriso me esperando, como se disso eu não escapasse nunca, como se eu fosse missionário da alegria dos homens, ainda que impossivelmente dolorosa e ridiculamente improvável. Abandonemos nossa ideia enfraquecedora de natureza: a floresta não se importa de queimar. Ela, muito mais que nós, renascerá. Porque seus frutos são necessários. E é de necessidade semelhante que somos feitos, que tiramos nossa imortalidade. Fria poesia do carbono. Indiferença: esse é meu consolo e conselho para vós que chorais. Debaixo do vosso choro há uma necessidade e aqui os filósofos acertaram: carência orgânica e obrigatoriedade lógica são irmãos conceituais e por isso recebem, adequadamente, o mesmo nome. Não pergunteis apenas do que necessitais, mas que necessidade conjugais, manifestais. Encontrai em vós o que é da Natureza e olhai-vos com Seus olhos. Sofrei, perecei, renascei.

Acre consolo

E se a convalescença — o valor supremo para todos nós que estamos doentes — necessitar dos nossos gritos e quedas e da mais profunda dor e supremo sofrimento? E se, ao final de cada sessão de tortura, remitisse-se o câncer de que padecemos? E se houver sono, verdadeiro descanso, depois das mortes? Que caminho é esse? Por onde se vislumbra dor e escuridão, por onde sequer réstia de luz nos chega a iluminar... Estaremos confundindo, como os antigos, sofrimento com crescimento? Seremos nós parte desse conjunto insuportável de miséria — desnecessária, sem fio nem alvo — dos homens? Habitamos a galeria dos mortos-vivos? Viveremos?! 

3 de maio de 2018

Pior

Acima de todas as coisas, deve-se odiar a si mesmo. Com a força de mil dragões e cem tempestades, como se não houvesse tesouro que não se reservasse por detrás do castelo tenebroso de si próprio, e como se só através da raiva e do auto-desprezo esse tesouro se revelasse. Como se tudo de bom só pudesse existir se um ódio maior que a vida, maior que Deus, consumisse tudo e todos, principalmente a si mesmo. Como se de todos os assassinos e estupradores e genocidas e tiranos e psicopatas reunisse-se em si mesmo o que há de pior, o extrato mesmo da maldade, e dessa substância escura não se visse nenhuma luz nem se sentisse nada que não profundo desprezo, nojo, podridão — como se os vilões dos desenhos fossem reais e você os incorporasse com cada célula do corpo. Como se nada nada em você pudesse se salvar ou ameliorar, tudo em si corrupta escuridão e desfalecimento, hanseníase moral da humanidade, fétido feto abortado da luz, morto de propósito com agulhas elétricas enfiadas pelo cu de Maria. Como se nada pudesse ser capaz de perdoar a sua alma e qualquer animal, por inferior e simples seu sistema pensamentivo, imediatamente se enojasse da sua presença e reconhecesse nela supremo perigo e animosidade, como se a própria natureza o rejeitasse em tudo — e apesar disso ainda fosse patético e miserável. Nada, e paradoxalmente, o pior de tudo. Fera da fera, lobo do lobo. Torturador, algoz, assassino. Nada satisfaria mais Deus que a tua aniquilação. 

Contra o que se deve revoltar

Tudo o que nos apequenou e amoleceu, tudo que justificou o apequenamento, que condescendeu-se à moleza. Tudo que livrou a cara do tapa da natureza e mais ainda aquilo que justificou a fuga do tapa com um esbravejar rouco contra as tempestades. Tudo que em nós fugiu da natureza e tudo que lá fora encontrou refúgio, cama inflável, joelheira, capacete, sistema de segurança, prudência: a competência se conquista cortejando o desconhecido. Quem preferiu castrar antes para não precisar abortar depois. Quem pede cautela, regulação, paternalismo urubuzante, tutela, pastoreio, mão-na-mão e colo. O direito de morrer se conquista vivendo perigosamente. Que o perigo deixe sua marca em nós e que a prudência — nossa prudência — não tenha como alvo nada que nos é exterior. Entendamos as guerras e a bestialidade. Somos monstros! E devemos nos revoltar contra tudo que tentou esconder este fato. Véu dos véus, essa moléstia sobre o espírito! O carinho, meus caros, deve vir depois, depois! Antes: precisamos brincar na lama da natureza.

A função da imaginação

Nosso senso ético é tanto mais aguçado quanto mais cientes somos da própria letalidade. Primeiro vem o dano, primeiro a violência; a gestação da paz veio gerações mais tarde. E o que é a raiva? Ora, é a imaginação do poder! Sentimo-la para não ter de exercitá-lo. Por isso é tão engraçado, tão dirwinamente boçal, quando vemos esses seres humanos evitando a raiva sob o pretexto de evitar o poder! Erro sobre erro!

Analogia hiper-extendida

Imagina uma máquina. Pré-eletrônica: válvulas, vapor, pistão, engrenagens, metal. Há uma certa ordem, nos dois sentidos: uma organização, hierárquica como sempre, padronizada, regular, bem-encaixada, reconhecível; também ordem no sentido de sequenciamento, uma cadeia causal ininterrupta, bifurcada às vezes, mas quase sempre um-depois-do-outro, isto-causa-aquilo, um dois três loop, sentido horário, para frente e para sempre. Se somos máquinas (e somos), a manutenção de nosso bom funcionamento é a prioridade. E manutenção preventiva é preferível. Temos uma certa ordem por base. Ainda quanto possamos imaginar o fim da ordem com a pontinha de nossos cérebros, todo o resto da montanha que somos é hierarquicamente organizado, pedra sobre pedra, camada sobre camada. E não haverá sequer imaginação caso essas camadas quebrem. Por isso a manutenção é tão importante quanto invisível. Descobrir qual é o nosso "para frente", qual engrenagem exige outra engrenagem, desvendar a hierarquia das nossas camadas, olear as nossas esteiras dentadas, habitar o "salão das máquinas" de nós mesmos. Muita inconsciência, escuridão, irracionalidade, esquecimento, bagagem técnica, feiúra, poeira e ineficiência — — moram aqui embaixo. Mas a relação entre a pontinha de nossos cérebros, onde sentimos o gosto suave das poesias e a genialidade dos silogismos clássicos, as ranhuras esteticamente agradáveis de nossas maquinações, nosso pulsar elevado e divino, abrir de asas — melhor: estender de mastros! — tudo isso e tudo o mais dependem da qualidade do nosso subsolo. Da qualidade de nossa manutenção. A meditação que se torna loop confortável entre nuvens e cumes não nos interessa. Somos arqueólogos-baloneiros. Habitantes costumeiros do submundo. Emergir é nossa rara recompensa, não nossa rotina. Nossas meditações são simples, porque todo maquineiro é simples. Não temos o luxo de sistemas mal pensados, nublados, vagos: aqui é cano-sobre-cano, silvertape e carinho. Nossa filosofia (se é que se pode chamar assim) é funcional no sentido de ter, por único objetivo, o funcionamento — e mais nada. Todo o resto é lucro. O magma não imagina o céu azul. Por isso não tememos as regras e manuais de instruções: são nossos amigos e guias. Um bom manual de instruções ilumina mais que lanterna. Nosso imperativo moral? Deixar as coisas mais arrumadas do que as encontramos, facilitar o trabalho do maquineiro do futuro (nós ou outrem). Não aspiramos a mais que isso, pois não temos tempo nem energia. O trabalho nos toma todos os recursos. Não espanta que estejamos sempre cansados.