3 de maio de 2018

Analogia hiper-extendida

Imagina uma máquina. Pré-eletrônica: válvulas, vapor, pistão, engrenagens, metal. Há uma certa ordem, nos dois sentidos: uma organização, hierárquica como sempre, padronizada, regular, bem-encaixada, reconhecível; também ordem no sentido de sequenciamento, uma cadeia causal ininterrupta, bifurcada às vezes, mas quase sempre um-depois-do-outro, isto-causa-aquilo, um dois três loop, sentido horário, para frente e para sempre. Se somos máquinas (e somos), a manutenção de nosso bom funcionamento é a prioridade. E manutenção preventiva é preferível. Temos uma certa ordem por base. Ainda quanto possamos imaginar o fim da ordem com a pontinha de nossos cérebros, todo o resto da montanha que somos é hierarquicamente organizado, pedra sobre pedra, camada sobre camada. E não haverá sequer imaginação caso essas camadas quebrem. Por isso a manutenção é tão importante quanto invisível. Descobrir qual é o nosso "para frente", qual engrenagem exige outra engrenagem, desvendar a hierarquia das nossas camadas, olear as nossas esteiras dentadas, habitar o "salão das máquinas" de nós mesmos. Muita inconsciência, escuridão, irracionalidade, esquecimento, bagagem técnica, feiúra, poeira e ineficiência — — moram aqui embaixo. Mas a relação entre a pontinha de nossos cérebros, onde sentimos o gosto suave das poesias e a genialidade dos silogismos clássicos, as ranhuras esteticamente agradáveis de nossas maquinações, nosso pulsar elevado e divino, abrir de asas — melhor: estender de mastros! — tudo isso e tudo o mais dependem da qualidade do nosso subsolo. Da qualidade de nossa manutenção. A meditação que se torna loop confortável entre nuvens e cumes não nos interessa. Somos arqueólogos-baloneiros. Habitantes costumeiros do submundo. Emergir é nossa rara recompensa, não nossa rotina. Nossas meditações são simples, porque todo maquineiro é simples. Não temos o luxo de sistemas mal pensados, nublados, vagos: aqui é cano-sobre-cano, silvertape e carinho. Nossa filosofia (se é que se pode chamar assim) é funcional no sentido de ter, por único objetivo, o funcionamento — e mais nada. Todo o resto é lucro. O magma não imagina o céu azul. Por isso não tememos as regras e manuais de instruções: são nossos amigos e guias. Um bom manual de instruções ilumina mais que lanterna. Nosso imperativo moral? Deixar as coisas mais arrumadas do que as encontramos, facilitar o trabalho do maquineiro do futuro (nós ou outrem). Não aspiramos a mais que isso, pois não temos tempo nem energia. O trabalho nos toma todos os recursos. Não espanta que estejamos sempre cansados.

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