10 de outubro de 2015

Canção de vida e morte

Nós, espíritos primaverais, temos muito o que aprender com nossas amigas flores. Não tanto a abrir, pois a isso somos todos naturalmente inclinados, mas sobretudo a fechar — com leve e graciosa indiferença, não por não ser terrível o destino de quem nunca mais abre (é), mas pela calma de saber que abrir não é uma escolha. Nossa maior neurose não é a de querer pôr fim aos sofrimentos, mas a de querer dar início às potências. Quanto mais romântico, nesse sentido, tanto mais doente.

Não somos nós os autores de nossos prazeres. Nossas mais belas composições são menos atos de canalização de força do que de permeabilização ao que nos é externo. Aqui, como em todo lugar, assombra-nos o espectro do indivíduo. Pura ilusão. Na natureza não há indivíduos; no máximo, há contornos.

Querer menos, desejar mais. Diminuir o atrito interno. Hibernar com devoção, entregar-se à incerteza.

Quantos conselhos em linguagem de esfinge não deixaremos para o futuro? De nós esperamos apenas que cresçamos. As maiores notas de suicídio foram as que nossos eus do passado deixaram para nós — nós, herdeiros; eles, mártires. Continuamente morremos ao parir a nós mesmos. A cada dia um novo sol nos espera. Muitas auroras ainda estão por vir, e serão nossas alegrias que as desfrutarão, sentadas na praia ou no topo da montanha. Nossas tristezas e nosso cansaço pertencem ao eclipse vindouro: cairão, enfim, em desgosto. 

Morreremos ainda cem mil vezes, e tantas vezes mais renasceremos. A fênix que em nós faz lar brilha sempre mais forte, e a cada morte se incandesce ainda mais. O que não mata, fortalece? Precisamente a morte — a nossa morte! — torna-nos mais fortes, torna-nos quem somos. Essa dualidade de si — de sermos ao mesmo tempo filhos e pais de nós mesmos, ao mesmo tempo fetos nascituros e idosos suicidas — explica a variância estilística na prosa e o diálogo interno na filosofia. Somos dois. Um a morrer, outro a nascer.

Com que caneta escreveremos o futuro? Com que braços ninaremos nossas crianças? Com quantas poesias se ganha uma guerra?

Temos muito o que aprender com nossas amigas flores.

3 de outubro de 2015

A mais potente fé

A razão é o maior mito que a humanidade já inventou.

1 de outubro de 2015

Por amor ao mundo

De todas as artes o teatro é a mais dada ao choro. Nele a solidão é impossível, pois mesmo o espectador solitário se confronta com a carne-e-osso no palco à frente. A poesia, ao contrário, permite e até encoraja a solidão, e por isso exige uma música interna adequada, um silêncio mental cavernoso, capaz de ecoar as rimas e de dar profundidade aos sons. O teatro não. No teatro, a caverna se impõe de fora pra dentro, destrói os barulhos internos, impera autoritária sobre qualquer que seja o concerto dos órgãos, rouba-lhes as batidas ruidosas para em seu lugar colocar gloriosas cordas de harpa — com as quais os anjos-atriz produzirão celestial melodia. 

Assim foi meu encontro hoje com Hannah. Um confronto lacrimejoso, entristecido; sobretudo desentorpecido. Não havia dorflex que me impedisse de, olhando-a nos olhos, sentir-lhe a companhia. Ela, mulher, amante, pensadora, atriz, judia, filósofa, musa, singela. Atacava-me com as palavras, furando minha tristeza, alimentando-me de humanidade. Nunca fui tão judeu quanto defronte dela. Tornou-me homem ela, pegou-me pelo braço e me ensinou a coragem que dormia em mim, sempre dormiu. Não há monstros nos outros, ela diz, em franca oposição aos corações de todos em sua volta. Nossos monstros são nossas mediocridades. Nossas banalidades, nossas fraquezas. Um grito de vida e de esperança procurando —não: exigindo! — grandeza. Nossa grandeza. 

Com a pequenez da minha hombridade judia contrastava a grandiosidade da estória do meu povo. Não, não o meu povo judeu, que nunca me pertenceu nem me deixou pertencer. O povo-verdade, povo ensimesmado, povo vivo. Sorriso de criança. De amor e de esperança a terra se adensa. Nosso sofrimento é nosso adubo. Nossas artes, nossas folhas. Por que o teatro faz tanto chorar? Porque, embora não sejamos todos poetas nem músicos, somos todos atores no palco da vida. E a amizade de que tanto carecemos não é senão sorriso de atriz. Ela, que chora com o teu choro, te ama como às estrelas os gregos. Fazer teatro é fazer do próprio corpo um grande ombro no qual os homens chorem. O teatro é uma mulher! Seu nome é Hannah e a ela não podemos senão amar.

Arquitetura do afeto

De boas memórias os lugares se tornam confortáveis.