27 de fevereiro de 2017

Rir-se!

O que torna a criança tão amável? Não é o fato de ser estúpida, como a alguns parece, mas o fato de não levar ela a sério a sua estupidez. O outro lado dessa moeda, igualmente verdadeiro, é o fato de que a sua genialidade — — ela também não leva a sério! Tão leves essas crianças, rindo-se de tudo, de tudo fazendo jogo. É provável que às vezes sequer ela saiba se está sendo estúpida ou genial, desde que ainda não tenha aprendido aquele olhar julgador que inaugura essa divisão. Riamos também nós de nossa estupidez e entreguemo-nos à leniência com nós mesmos. Escrevamos e escrevamos, e certamente escreveremos besteiras e estupidezes, mas talvez escrevamos igualmente uma genialidade ou outra. Desaprendamos, ainda que apenas por um segundo, aquele olhar julgador, bebamos nosso vinho e façamos piada. É carrnaval, meus caros, e também o pensamento precisa se travestir de seu oposto para não perder a lucidez. Ele há de voltar, meu amigo filósofo, não precisas te preocupar.

Mais um esquecimento

Quem dedica a alma por muito tempo ao pensamento com freqüência esquece aquela sensação da infância de pensar sem um centro, como manivela que não está presa a nada mas que ainda assim gira desconstrangida e leve. Como queremos mudar o mundo, ao crescermos insistimos em prender nosso pensamento a uma base, para que ao rodá-lo sintamos que nossos esforços movem algo lá fora. Epistemologias inteiras escrevemos em busca desse centro, dessa base de manivela segura o bastante para que o mundo seja com ela manejado. Ao ficarem gagás, como invariavelmente acontece, os cientistas experimentam intensa alegria, pois finalmente podem usar suas manivelas (que poliram durante toda a vida e que tão habilmente seguram) sem atá-las ao que quer que seja: tornam-se livres, como crianças, pois fazem o que amam — pensam — sem o peso de outrora e tudo, tudo parece agora girar com a manivela e são por isso corretamente chamados de loucos. A manivela que tudo gira é tão útil quanto a palavra que tudo significa (pensar é discriminar). Como é linda e como é assustadora e como é patética essa imagem do cientista gagá que se perde, cansado demais de procurar bases e centros e seguranças e métodos. Recomenda-se, para prevenir esse destino, eventuais mergulhos nessa irresponsabilidade mental, o entregar-se ao pensamento sem o lá-fora, uma espécie de meditação do intelecto. Nosso objetivo é reganharmos o contato com a alegria da infância sem no entanto perder o que aprendemos, sem nos tornarmos impotentes, sem nos tornarmos cientistas malucos. Conseguiremos.

Péssimos ontólogos

Toda educação pode ser resumida à compreensão de metáforas, pois nossa teia — isto é: nossa linguagem — é teia de metáforas. Julgue a inteligência de seus pares pela forma como compreendem ou não as analogias e os jogos de palavra e acima de tudo preserve perto de si aqueles que são habilidosos em criar boas metáforas, aqueles para quem nenhum campo é distante o suficiente que não possa ser comparado a um outro um pouco mais próximo, para quem todo bosque da cognição é florido mergulho em jardim de sensações intelectuais — e sensações intelectuais são metáforas!: a mente sentindo o que não está ali mas poderia. PODERIA: esse é o verbo metafórico por excelência. Nós, os metafóricos, abdicamos de dizer o que as coisas são para nos dedicarmos ao que elas poderiam. Do mundo todo somos artífices! Criamos, com nossas analogias e brincadeiras e versos (alguns diriam: nossas mentiras), as mais belas pontes entre as coisas.

Péssimos físicos

Ao fazer julgamentos sobre si, o homem erra o tempo todo: sempre prefere medir a distância que o separa de um zero qualquer, e tudo — o zero, o aqui e mesmo a régua — aí são erros, tudo injustificável arbítrio! Não se mede o relativo com o absoluto. De nós mesmos somos a única régua: podemos apenas nos distanciar ou aproximar de nosso cor. Lembremos sempre que ao corrermos 60km/h na Terra nossa velocidade em relação às outras galáxias não se altera sequer por um 0,001%! e o mesmo erro incorremos ao nos julgarmos: ignoramos a inércia em nós e nos medimos a partir do que de menor existe à nossa volta. Mas somos enormes! Galáxias inteiras somos nós. E galáxias — — não se julgam. Queimam.

A nossa musculação

Aquele ali é musculoso, sim!: a vida inteira trabalhou em fazer crescer o coração.

Soma da educação

Toda neurose é obediência aos pais corporificada. A saúde é rebeldia controlada.

24 de fevereiro de 2017

Vita contemplativa

Diferente do corpo, a alma se fatiga quando não se mexe. Por isso a inação espiritual é tão perigosa e a preguiça mental, tão difundida. Pois, almejando “descanso”, condenamo-la ao repouso — e nada é mais tóxico para a alma do que o repouso. Não. A alma precisa de ação — sua ação. Quanto mais se agita, mais se convalesce. Bem aventurado aquele que tem diante de si tarefas da alma: pois dele é o reino do espírito e para nada lhe faltará gás. Entende agora o paradoxo dos que vivem intensamente? Não é que tenham energia para as coisas, é que das coisas ganham energia! Dancemos, meus caros! Que a nossa paralisia dormente à eternidade póstuma pertence.

20 de fevereiro de 2017

No meio do caminho

Se somos assim ou assado — felizes ou tristes, por exemplo — importa muito pouco perto do que fazemos. A felicidade só é desejável na medida em que nos permite um pouco mais de força ou arrebatamento para que realizemos o que quer que seja; em si, ela não vale quase nada. Perceber isso é mais uma dessas descobertas desencantadas na meia vida de um pensador: não oferece nem consolo nem vigor, apenas se nos põe como pedra no caminho, indiferente como todas as pedras. Mas isto devemos aprender rápido: indiferente à nossa felicidade é a natureza. E talvez nós mesmos devêssemos ser — — um pouco mais como a natureza...

14 de fevereiro de 2017

Corajosos, logo distintos

Discordar sinceramente de um amigo é a maneira mais profunda de respeitá-lo.

13 de fevereiro de 2017

Como o sol precisa da sombra

Dizer não é completamente diferente de não dizer.

Como é?! — dizer não pode ser uma forma de... afirmar?

12 de fevereiro de 2017

Alma de balão

A vergonha é o medo de não caber em si mesmo. (Por isso ela nos fura: tem como objetivo nos definhar para que, esvaziados, ocupemos menos espaço)

Os nãos que preparam o sim

Entre dois encontros há um hiato insuportável, durante o qual viajamos desacompanhados por longas eternidades. Cuidemos, porém, para não nos precipitarmos em meias companhias, por receio de que o sol do outro nunca mais brilhe. Em vez disso, devemos nos agasalhar, como quem se prepara para longo inverno, e acumular solidões. Entesourar!: isso nos pede o poeta. Calmamente depositamos fé no futuro, seguros de que, tal como o verão, o grande encontro virá. Nossa solidão é a energia potencial da nossa alma: transborda tão logo encontra vale profundo o bastante onde se derramar. Até lá, nossa tarefa é engrandecer e tanto maiores nos tornamos quanto mais solidões comportamos.

Às estrelas cadentes

Que as nossas solidões façam companhia uma à outra.

10 de fevereiro de 2017

Dar à luz em várias vozes

Na vida haverá momentos em que ficaremos nervosos e nossas mãos tremerão, incapazes de se conter em si mesmas — e nesses momentos, como em todos os outros, há que se escrever. E há os escritores que só escrevem quando nervosos. Embora admiremos essa capacidade de segurar firme a pena apesar dos tremores, temos de nos lembrar que a vida escreve em todos os momentos, não só quando urge, e se quisermos escrever nossos livros como Deus escreveu o mundo teremos que nos tornar escritores ambidestros. Pois a ânsia e o desejo e a alegria e o tremor — essas são coisas que se tem e que não se tem. Você, meu amigo, está perto de conseguir escrever com raiva e eletrizante tesão — mas, lembre-se, a calmaria é tão maternal quanto a tempestade. Nesse seu caminho, você terá que aprender a ser como mar: e isso inclui suas ondas as mais altas mas também seus momentos de laguidão onde a sua alma é o maior espelho do céu. Não será fácil e sentiremos falta de nossos tremores, agora que depois de tanto custo nos acostumamos a eles, mas mire a si mesmo nos olhos e reencontre aquela grandeza domadora de chamas que existe dentro de você: aprenda consigo próprio a paciência.

9 de fevereiro de 2017

Tornar-se estrela

Não devemos nos envergonhar de nossa história. Acima de tudo, quando nos faltarem consolos, é preciso que nos lembremos da nossa maior força: o esquecimento. O maior milagre da vida é ter feito as memórias perecíveis. Fossem hereditárias, não aguentaríamos sequer três gerações — raios!: se não dormíssemos e esquecêssemos, não aguentaríamos três dias. O mundo é novo porque esquecemos. Lembrar é reagir. Esquecer é criar. Tudo transformaremos e como crianças desenharemos os mesmos traços e amaremos de novo e de novo, como se não tivéssemos passado. E não temos. Porque na verdade não há amanhã. Eu e você somos dois nadas que, intransigentes, ousaram contentar-se. E o que torna um átomo mais ou menos carregado? O que faz com que tenha um ou três prótons, um ou dois elétrons? Quanta erótica não há na mais microscópica das físicas? Esqueçamos! Somos partículas. Nosso amor, nossa vontade, é intransigência divina: modificamos a nós mesmos, encarnamos o universo: e perecemos. Acima de tudo perecemos.

 

Mas, enquanto isso, amamos. 

Temos alguns trilhões de anos até que todos os sóis se apaguem. O tempo urge! Muitas poesias precisam ser ainda compostas antes que a humanidade — ou o que quer a suplante — possa aprender a viver. Educá-la na beleza: essa é a nossa tarefa. Amar e esquecer: como o carvão esquece de si ao queimar. Somos velas no breu universal. Queimamos e por um breve instante vê-se algo — sombras, silhuetas, cores, detalhes, olhares inteiros se criam para as velas — até que apagamos. Não choremos nossa finitude: morremos porque queimamos. E nós: não temos vergonha de queimar. Não devemos nos envergonhar de nossa história.

4 de fevereiro de 2017

Qual era mesmo o nome? Aurora?

Dormiu então, só e com sede, porque quem sabe o dia de amanhã não traria consigo um ineditismo na alma e de repente tudo fosse novo e diferente e de repente não mais quisesse morrer e talvez viver até lhe soasse bom. Então pensou se deveria tentar buscar companhia e ajuda, mas se resolveu por se abandonar na solidão triste porque era isso mesmo que ele provavelmente merecia. E dormiu.

O horroroso

E ele escrevia e escrevia como se escrever fosse seu modo de sentir esperança, e tão desesperadamente ele escrevia, ávido de esperança, porque nele tudo estava morto, não podia passar um minuto que fosse sem escrever, pois cada minuto era desesperança eterna e dor e choro, e para não chorar precisava escrever, mas às vezes escrevia mesmo chorando, molhando as palavras conforme avançava no papel. Ninguém tinha tanto choro quanto ele, porque não havia alívio para seu choro. A escrita não era alívio, era desespero. Desesperado procurava um rastro qualquer nem de força, mas de simpatia por si mesmo que fosse, desesperado não encontrava, porque nada, nada nele poderia ser salvo, tudo nele era monstruoso e feio e ordinário e quando o poeta lhe tentava convencer da grandeza ele só chorava mais e mais, até conseguia agradecer ao poeta, porque apreciava ser por ele simpatizado e como que um pouco amado, mas acima de tudo precisava se amar e isso ele não podia, não conseguia. Por si mesmo não havia uma única gota de amor, como se fosse todo ele não uma coisa que sente, mas a coisa que bloqueia e criminaliza o sentimento. Ele portanto não se identificava com, não se sentia, si mesmo, com seu eu que sente e pensa e escreve, ele se identificava com as repressões que sentiu, os Nãos que viveu e que ouviu e que obedeceu. E é claro que se odiava porque essas repressões são odiaveis e terríveis e são jaulas cruéis a que ninguém deveria ser submetido, muito menos uma criança como ele. Mas ele era sua própria jaula e se sentia não como o enjaulado, mas como as grades. Tudo que queria era poder chorar como a fera enjaulada, sentir a própria dor de ser enjaulado, mas nem isso ele tinha. Nem a solidão de escravo ele tinha, porque nem escravo ele se sentia. Ele se sentia o carrasco de si próprio como se fosse a sua própria mão que lhe chicoteasse as costas, como se ele fosse o mais imoral dos senhores, o monstro em si, o tenebroso, a sombra, ele não tinha luz ele era o peso e o teto e nada nele merecia carinho, tudo nele era em vez disso coisa ruim, endiabrada, invejosa, má, terrível e só. Escrevia para tentar fugir de si, para tentar alcançar a sua fera interior, enjaulada, para tentar dar-lhe voz e quem sabe — quem sabe por um segundo apenas — sentir-se o dono dessa voz! Dessa voz bonita que pelas palavras ele fazia sair, dava corpo. Mas não, seria sempre um estrangeiro em relação a essa voz de fera, no máximo lhe daria corpo através das palavras, sem nunca sentir em si mesmo a sua força como sua, mas sempre alheia, sempre segunda, nunca sua, nunca sua nunca sua. Suas eram as grades, os chicotes e as punições, ele era o seu próprio carrasco e se odiava e era incapaz de se amar, completamente incapaz, restando-lhe apenas o desespero de escrever e quem sabe escrevesse algo tão bonito que a beleza arrebatasse sua alma e ele sentisse um raio de sol no rosto e por um segundo se iluminasse e se sentisse merecedor do amor de deus, do amor de si mesmo. Mas a iluminação nunca veio e deus nunca o amou, e ele permaneceu inatingível pelo próprio amor que tinha dentro de si, quer dizer dentro da fera, que não era ele, porque ele não se sentia fera e não se sentia um com a fera. Escrevia sem parar, escrevia até os pulsos doerem e as pontas dos dedos calejarem, escrevia rápido e com pressa, porque nada era mais urgente do que sentir-se a si mesmo como pessoa, como um eu, e não conseguia e a cada frase se esforçava mais, vomitando as entranhas que encontrava na expectativa de um dia quem sabe se encontrar e se sentir fera, mas não se sentia. Chorava, chorava, chorava e escrevia. Não havia ser mais lindo do que ele no universo e no entanto ele chorava, porque não merecia e porque não era capaz de se amar. E chorava, não como consolado, mas como desesperado, entregue, sem esperança e sem nada. Sem alma, já totalmente do diabo, morto, barroco, dado, feio, amaldiçoado, maldito, terrivel. Ninguém o salvaria, ninguém o salvaria. Ele morreria afogado em sua tentativa de ser quem era, mas nunca seria, sempre arriscaria de longe, sempre tentaria canalizar seu eu, mas sempre fracassaria, sempre morreria na praia, incapaz de ser mar, incapaz de qualquer força, invejoso de todo mendigo e de todo preso, porque eles pelo menos sentiam-se si mesmos e ele não conseguia se sentir nada, apenas carrasco, apenas choro desesperado e horrível de quem se sente verdadeiramente mau e indigno e impuro e quem só os fogos infernais merece porque nada nada naquela alma se salva e a fera morreria com ele, impotente e inocente, tão bonita e tão ávida de dizer as coisas que tinha pensado, mas não poderia porque ela não tinha corpo e esse corpo que a enjaulava não a merecia e era melhor que explodisse e definhasse e se encerrasse ali todo o sofrimento. Que assim fosse porque qualquer morte é melhor do que isso, essa existência que não se conhece nem se reconhece, que é apenas a matadora da liberdade, o assassino, o carrasco. Morre de uma vez. Mas nem pra isso tinha coragem, nem pra isso nem pra nada.

Nosso espírito

Apenas duas coisas são sagradas no reino dos homens: a linguagem e o corpo. Ela, porque é o barco que nos leva para além, que sempre nos levou e continua a levar, apontando e apanhando o que nossos braços são curtos demais para alcançar, pequenos demais para envolver; ela é, assim, como que o nosso maior órgão, maior até do que os olhos (que enxergam até o horizonte) e do que as pernas (que a todo lugar nos levam), pois só na linguagem temos o infinito. Ele, porque é o palco onde tudo acontece, a panela de pressão de onde sairemos nós mesmos; tudo o que é e onde tudo se encerra, pois nada acontece fora do corpo e nada está para além dele; e principalmente porque é no corpo que sentimos — — outros corpos (repare que a linguagem, por enorme que seja, não atinge outras linguagens, mas apenas atinge outros corpos, pois somente corpos são atingíveis). É nesse binômio corpo–linguagem que nos localizamos – nós, poetas! Nós, poetas: os aradores da única religião que sobreviverá ao futuro, a única religião que jamais existiu. Apenas duas coisas são sagradas no reino dos homens: a linguagem e o corpo.

Capítulo 3 — Milagre no expresso

Foi então que tomado de coragem se levantou de seu assento, sorrindo com uma leveza de criança, embalado naquela indiferença à própria vergonha que subitamente o arrebatara, e prefaciou sua fala cuja quentura já sentia na barriga com a pergunta: "Senhoras e senhores, vocês se incomodariam se eu invadisse o silêncio desse trem para ler uns trechos deste livro?" e tinha de ser econômico e direto, pois falar para um grande público, aquelas dez ou doze pessoas naquele vagão, requer destreza discursiva tal que não se deve alongar as frases e disso ele sabia bem, mas em seu coração se justificava (silencioso por fora) "é que tem beleza demais aqui e nada me daria mais prazer do que dividir essas belezas com vocês, estranhos que abençoam meu caminho" e em seu olhar se notava aquela audácia de ator mirim, orgulhosíssimo de sua própria interpretação, sorrindo no palco da vida, e naquele vagão pelo menos uma jovem e um idoso foram capazes de se emocionar com aquele olhar e positivamente acolheram-no com a cabeça; o restante dos passageiros manteve-se em silêncio mas isso era tudo de que ele precisava: bastava que não protestassem que, sabia-o, daria a si mesmo a permissão para começar seu doce espetáculo e, sem tomar fôlego, logo começou:

 
"Não há rosas neste mundo que não anunciem com o seu cheiro a sua jornada, como se sua essência exalasse seu passado. Sim, meus caros, as rosas não cheiram todas igual, pois há rosas doces e amargas, sensíveis e violentas, rosas vermelhas e azuis, e na verdade não há duas sequer que cheirem o mesmo, porque o universo na sua infinita multiplicidade fez um pacto com Deus e criou a maior de suas invenções, que é a singularidade de todas as coisas, diferentes entre si como dois astros de duas galáxias enormes e distantes, mas Deus deu aos homens narizes por demenos sensíveis, de forma que se enganam os homens a todo tempo, vendo unidade e igualdade onde haveria um sem número de tons e nuances diferenciativas e distinguidoras. E tal como é com a rosa assim é também com todo o resto e também com o amor e também com o teu rosto. Porque sempre que se ama se ama diferente e único e quando eu te amo eu te amo de um jeito que nunca nada antes de mim havia amado nada: sou o primeiro e o último de mim mesmo e isso me dá a mais infinita das solidões mas também me embebeda de um privilégio único: que é o de ser o primeiro e o último a te amar da forma como eu te amo. E o teu rosto, assim como o meu amor, contém em si toda a história de como tu vieste até este momento, todo o teu devir passado e inclusive os germens de futuro que já te habitam a cara: pois como as rosas o cheiro do teu rosto é único e nunca houve verão em que te desabrochaste tanto quanto neste verão aqui e agora, e é por isso que eu te amo e dedico esse poema ao verão e a todas as criaturas que nele tomam parte, pois cada esquilo e árvore e folha e mendigo deste planeta e de todos os outros também fizeram parte desse verão, unidos que estão pela Criação e separados pela diferença e pela distância — cúmplices na solidão e apenas na solidão, porque a solidão deles toca a minha e sei que a minha solidão toca a tua e que só assim é possível amar e só assim eu te amo."
 
Leu em um fôlego só, andando por entre os assentos e gesticulando energicamente, como se contivesse dentro de si aquele ar adolescente e apaixonado que dera à luz aquela declaração de amor, como se fosse ele mesmo quem o escrevera e não um outro alemão, cujo nome ele em breve citaria, e como se todas as belezas ali declaradas morassem em seu peito e como que procurassem atingir o mundo através da projeção que lhes dava a sua voz. E um silêncio se instaurou como se todas as pessoas naquele vagão tivessem sido tocadas pelo sol da manhã e, conscientes do privilégio, permitissem-se inspirar e apenas inspirar aquele ar puro e áureo que subitamente lhes chegava às narinas, como se pela primeira vez respirassem ar puro e se entoxicassem com tamanha doçura e naturaleza, porque as pessoas não são feitas para a doçura e apenas em pequenos goles conseguem sorvê-la; e nem todos ali aguentaram, alguns desviaram o olhar e um dos homens mais velhos, que era viúvo, derramou uma lágrima pois se lembrara de sua mulher e do que sentira na juventude, e seus olhos comunicavam gratidão apesar da dor da saudade. E uma moça lhe disse então "obrigado" e tudo, tudo até ali, sentiu que se justificava, todas as dores e pesadelos e mazelas como que perdiam seu ardor e se tornavam apenas suave pimenta adocicada, enfeitando o mundo e lhe intensificando o sabor, sem contudo maculá-lo pela dor. E o garoto sentiu-se satisfeito consigo mesmo e pensara com o seu coração que aquele momento não se deveria esquecer, pois foi ali a primeira vez que sentiu coragem tão arrebatadora e fez o que todos deveriam fazer quando sentem coragem dentro de seus corações: protegeu a beleza do mundo e deu-lhe lugar onde pudesse medrar e tocar, e este lugar tinha sido hoje a sua voz naquele vagão — e Deus sorriu pois era para esse tipo de gesto que havia criado os homens e permitiu-se um trago de seu cigarro divino pois sabia que, se tivesse dado aos homens apenas um pouco mais de sensibilidade que fosse, nem um deles conseguiria se livrar da dor universal — mas os narizes insensíveis dos homens davam-lhes a chance de sorver a alegria sem com isso contaminar-se pela dor, e assim foi. E no seu sonho todos o aplaudiram e ele descansou em paz consigo mesmo.
 
 

3 de fevereiro de 2017

Prescrição para quem sofre de pequenez aguda

Chorar, xingar e escrever. Preferencialmente nessa ordem. 

Dicionários de si

Para o amor precisamos de um novo dicionário. Comecemos removendo o verbete merecimento:
s.m. Internalização da culpa e de seu oposto. 

2 de fevereiro de 2017

Das entranhas!

A poesia arranha a alma. Sim, meus caros, para ser poeta é preciso ter a alma arranhada. Têm certeza de que é isso o que desejam? Ora, de onde vocês achavam que vinha o sangue com que escrevemos?