4 de fevereiro de 2017

Capítulo 3 — Milagre no expresso

Foi então que tomado de coragem se levantou de seu assento, sorrindo com uma leveza de criança, embalado naquela indiferença à própria vergonha que subitamente o arrebatara, e prefaciou sua fala cuja quentura já sentia na barriga com a pergunta: "Senhoras e senhores, vocês se incomodariam se eu invadisse o silêncio desse trem para ler uns trechos deste livro?" e tinha de ser econômico e direto, pois falar para um grande público, aquelas dez ou doze pessoas naquele vagão, requer destreza discursiva tal que não se deve alongar as frases e disso ele sabia bem, mas em seu coração se justificava (silencioso por fora) "é que tem beleza demais aqui e nada me daria mais prazer do que dividir essas belezas com vocês, estranhos que abençoam meu caminho" e em seu olhar se notava aquela audácia de ator mirim, orgulhosíssimo de sua própria interpretação, sorrindo no palco da vida, e naquele vagão pelo menos uma jovem e um idoso foram capazes de se emocionar com aquele olhar e positivamente acolheram-no com a cabeça; o restante dos passageiros manteve-se em silêncio mas isso era tudo de que ele precisava: bastava que não protestassem que, sabia-o, daria a si mesmo a permissão para começar seu doce espetáculo e, sem tomar fôlego, logo começou:

 
"Não há rosas neste mundo que não anunciem com o seu cheiro a sua jornada, como se sua essência exalasse seu passado. Sim, meus caros, as rosas não cheiram todas igual, pois há rosas doces e amargas, sensíveis e violentas, rosas vermelhas e azuis, e na verdade não há duas sequer que cheirem o mesmo, porque o universo na sua infinita multiplicidade fez um pacto com Deus e criou a maior de suas invenções, que é a singularidade de todas as coisas, diferentes entre si como dois astros de duas galáxias enormes e distantes, mas Deus deu aos homens narizes por demenos sensíveis, de forma que se enganam os homens a todo tempo, vendo unidade e igualdade onde haveria um sem número de tons e nuances diferenciativas e distinguidoras. E tal como é com a rosa assim é também com todo o resto e também com o amor e também com o teu rosto. Porque sempre que se ama se ama diferente e único e quando eu te amo eu te amo de um jeito que nunca nada antes de mim havia amado nada: sou o primeiro e o último de mim mesmo e isso me dá a mais infinita das solidões mas também me embebeda de um privilégio único: que é o de ser o primeiro e o último a te amar da forma como eu te amo. E o teu rosto, assim como o meu amor, contém em si toda a história de como tu vieste até este momento, todo o teu devir passado e inclusive os germens de futuro que já te habitam a cara: pois como as rosas o cheiro do teu rosto é único e nunca houve verão em que te desabrochaste tanto quanto neste verão aqui e agora, e é por isso que eu te amo e dedico esse poema ao verão e a todas as criaturas que nele tomam parte, pois cada esquilo e árvore e folha e mendigo deste planeta e de todos os outros também fizeram parte desse verão, unidos que estão pela Criação e separados pela diferença e pela distância — cúmplices na solidão e apenas na solidão, porque a solidão deles toca a minha e sei que a minha solidão toca a tua e que só assim é possível amar e só assim eu te amo."
 
Leu em um fôlego só, andando por entre os assentos e gesticulando energicamente, como se contivesse dentro de si aquele ar adolescente e apaixonado que dera à luz aquela declaração de amor, como se fosse ele mesmo quem o escrevera e não um outro alemão, cujo nome ele em breve citaria, e como se todas as belezas ali declaradas morassem em seu peito e como que procurassem atingir o mundo através da projeção que lhes dava a sua voz. E um silêncio se instaurou como se todas as pessoas naquele vagão tivessem sido tocadas pelo sol da manhã e, conscientes do privilégio, permitissem-se inspirar e apenas inspirar aquele ar puro e áureo que subitamente lhes chegava às narinas, como se pela primeira vez respirassem ar puro e se entoxicassem com tamanha doçura e naturaleza, porque as pessoas não são feitas para a doçura e apenas em pequenos goles conseguem sorvê-la; e nem todos ali aguentaram, alguns desviaram o olhar e um dos homens mais velhos, que era viúvo, derramou uma lágrima pois se lembrara de sua mulher e do que sentira na juventude, e seus olhos comunicavam gratidão apesar da dor da saudade. E uma moça lhe disse então "obrigado" e tudo, tudo até ali, sentiu que se justificava, todas as dores e pesadelos e mazelas como que perdiam seu ardor e se tornavam apenas suave pimenta adocicada, enfeitando o mundo e lhe intensificando o sabor, sem contudo maculá-lo pela dor. E o garoto sentiu-se satisfeito consigo mesmo e pensara com o seu coração que aquele momento não se deveria esquecer, pois foi ali a primeira vez que sentiu coragem tão arrebatadora e fez o que todos deveriam fazer quando sentem coragem dentro de seus corações: protegeu a beleza do mundo e deu-lhe lugar onde pudesse medrar e tocar, e este lugar tinha sido hoje a sua voz naquele vagão — e Deus sorriu pois era para esse tipo de gesto que havia criado os homens e permitiu-se um trago de seu cigarro divino pois sabia que, se tivesse dado aos homens apenas um pouco mais de sensibilidade que fosse, nem um deles conseguiria se livrar da dor universal — mas os narizes insensíveis dos homens davam-lhes a chance de sorver a alegria sem com isso contaminar-se pela dor, e assim foi. E no seu sonho todos o aplaudiram e ele descansou em paz consigo mesmo.
 
 

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