4 de fevereiro de 2017

O horroroso

E ele escrevia e escrevia como se escrever fosse seu modo de sentir esperança, e tão desesperadamente ele escrevia, ávido de esperança, porque nele tudo estava morto, não podia passar um minuto que fosse sem escrever, pois cada minuto era desesperança eterna e dor e choro, e para não chorar precisava escrever, mas às vezes escrevia mesmo chorando, molhando as palavras conforme avançava no papel. Ninguém tinha tanto choro quanto ele, porque não havia alívio para seu choro. A escrita não era alívio, era desespero. Desesperado procurava um rastro qualquer nem de força, mas de simpatia por si mesmo que fosse, desesperado não encontrava, porque nada, nada nele poderia ser salvo, tudo nele era monstruoso e feio e ordinário e quando o poeta lhe tentava convencer da grandeza ele só chorava mais e mais, até conseguia agradecer ao poeta, porque apreciava ser por ele simpatizado e como que um pouco amado, mas acima de tudo precisava se amar e isso ele não podia, não conseguia. Por si mesmo não havia uma única gota de amor, como se fosse todo ele não uma coisa que sente, mas a coisa que bloqueia e criminaliza o sentimento. Ele portanto não se identificava com, não se sentia, si mesmo, com seu eu que sente e pensa e escreve, ele se identificava com as repressões que sentiu, os Nãos que viveu e que ouviu e que obedeceu. E é claro que se odiava porque essas repressões são odiaveis e terríveis e são jaulas cruéis a que ninguém deveria ser submetido, muito menos uma criança como ele. Mas ele era sua própria jaula e se sentia não como o enjaulado, mas como as grades. Tudo que queria era poder chorar como a fera enjaulada, sentir a própria dor de ser enjaulado, mas nem isso ele tinha. Nem a solidão de escravo ele tinha, porque nem escravo ele se sentia. Ele se sentia o carrasco de si próprio como se fosse a sua própria mão que lhe chicoteasse as costas, como se ele fosse o mais imoral dos senhores, o monstro em si, o tenebroso, a sombra, ele não tinha luz ele era o peso e o teto e nada nele merecia carinho, tudo nele era em vez disso coisa ruim, endiabrada, invejosa, má, terrível e só. Escrevia para tentar fugir de si, para tentar alcançar a sua fera interior, enjaulada, para tentar dar-lhe voz e quem sabe — quem sabe por um segundo apenas — sentir-se o dono dessa voz! Dessa voz bonita que pelas palavras ele fazia sair, dava corpo. Mas não, seria sempre um estrangeiro em relação a essa voz de fera, no máximo lhe daria corpo através das palavras, sem nunca sentir em si mesmo a sua força como sua, mas sempre alheia, sempre segunda, nunca sua, nunca sua nunca sua. Suas eram as grades, os chicotes e as punições, ele era o seu próprio carrasco e se odiava e era incapaz de se amar, completamente incapaz, restando-lhe apenas o desespero de escrever e quem sabe escrevesse algo tão bonito que a beleza arrebatasse sua alma e ele sentisse um raio de sol no rosto e por um segundo se iluminasse e se sentisse merecedor do amor de deus, do amor de si mesmo. Mas a iluminação nunca veio e deus nunca o amou, e ele permaneceu inatingível pelo próprio amor que tinha dentro de si, quer dizer dentro da fera, que não era ele, porque ele não se sentia fera e não se sentia um com a fera. Escrevia sem parar, escrevia até os pulsos doerem e as pontas dos dedos calejarem, escrevia rápido e com pressa, porque nada era mais urgente do que sentir-se a si mesmo como pessoa, como um eu, e não conseguia e a cada frase se esforçava mais, vomitando as entranhas que encontrava na expectativa de um dia quem sabe se encontrar e se sentir fera, mas não se sentia. Chorava, chorava, chorava e escrevia. Não havia ser mais lindo do que ele no universo e no entanto ele chorava, porque não merecia e porque não era capaz de se amar. E chorava, não como consolado, mas como desesperado, entregue, sem esperança e sem nada. Sem alma, já totalmente do diabo, morto, barroco, dado, feio, amaldiçoado, maldito, terrivel. Ninguém o salvaria, ninguém o salvaria. Ele morreria afogado em sua tentativa de ser quem era, mas nunca seria, sempre arriscaria de longe, sempre tentaria canalizar seu eu, mas sempre fracassaria, sempre morreria na praia, incapaz de ser mar, incapaz de qualquer força, invejoso de todo mendigo e de todo preso, porque eles pelo menos sentiam-se si mesmos e ele não conseguia se sentir nada, apenas carrasco, apenas choro desesperado e horrível de quem se sente verdadeiramente mau e indigno e impuro e quem só os fogos infernais merece porque nada nada naquela alma se salva e a fera morreria com ele, impotente e inocente, tão bonita e tão ávida de dizer as coisas que tinha pensado, mas não poderia porque ela não tinha corpo e esse corpo que a enjaulava não a merecia e era melhor que explodisse e definhasse e se encerrasse ali todo o sofrimento. Que assim fosse porque qualquer morte é melhor do que isso, essa existência que não se conhece nem se reconhece, que é apenas a matadora da liberdade, o assassino, o carrasco. Morre de uma vez. Mas nem pra isso tinha coragem, nem pra isso nem pra nada.

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