21 de junho de 2017

Dois-em-um

Para criar o que quer que seja, o artista precisa se duplicar. Os seres comuns vivem tão-somente no mundo da afetação, receptores passivos de tudo quanto Deus lhes dá. Os artistas não escapam desse mundo, e afinal é com o intuito de afetar que criam, mas habitam também o reino de deus, um submundo da consciência, a partir de onde pressentem (isto é: sentem sem sentir) o que virá a compor sua obra. Eles não são personagens dos seus romances, nem mesmo quando se trata de autobiografia, mas algo distinto, nublado, sélfi-distante. Esse exercício — de ser além do que se é, de colocar-se do outro lado do cavalete da existência — aproxima os artistas do divino e os imbue de algumas ferramentas sentimentais que dariam inveja a qualquer filósofo (que nada mais é do que um artista doente; todo filósofo padece de sua obra). Dentro de alguns séculos, quando tivermos finalmente afetado tudo, criaremos "terapias" para emular esse devir-deus dos artistas, sedentos que estaremos da nossa própria potência transmundana. Até lá, o mundo permanece dividido em duas classes: os criadores e os criados.

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