12 de julho de 2010

da existência do Eu-lírico

Mas será que você não percebe? Será que eu não me fiz não-claro o suficiente? Eu não sou claro. Não pretendo ser, não quero ser. Não preciso ser. Você não precisa que eu seja.

Eu não digo os meus textos, as minhas palavras, os meus personagens. Eu digo através dos meus textos, através das minhas palavras, através dos meus personagens. Será que você não percebe, na transparência das minhas palavras? Não, você não percebe. Você pouco se importa com a transparência. Pra você, transparência é falta de opacidade, é falta, é falha. Pois a transparência é o que eu mais quero, o meu melhor recurso, o mais divertido deles. Eu não digo as coisas querendo dizê-las, digo-as querendo, ou digo-as dizendo-as, assim meio sem querer querendo.

Meus textos, irresponsáveis, não são mais do que um espaçoso salão, onde eu danço, canto, pulo, atuo, jogo futebol, faço amor, conto piadas, brinco de ser eu. Não é erro meu brincar de ser eu. Não significa que eu não sou eu seriamente, que eu não queira ser. Tanto é que só brinco quando me sobra tempo, vontade, fôlego – a maior parte do tempo me ocupo tentando ser eu a sério.

É por isso que é escroto – e eu bem deveria ter previsto – você não me ler, só porque eu, Friedrich, me filiei ao partido Nazista. Ou porque eu, Lobo, mostrei-lhe meus dentes afiados e minha pata sangrando. Não, não não. Nunca são eles que lhe dizem, mas você que os interpreta! Tanto é que eu poderia argumentar, livremente, em poesia, o quanto as minhas próprias poesias foram mal-lidas – consideradas bonitas quando eu estava feio, e feias quando eu estava todo bonito. Mas por que argumentar isso? Não quero argumentar isso, porque brincar de ser é assim. Não entender, “mal-interpretar” faz parte, é quase a essência da brincadeira. Um passe errado, no treino, é sinônimo de risada do companheiro de time, não de represália. Quando eu, Romântico, quis amar e não pude, eu brinquei: como num sonho em que eu posso voar, eu escrevia sobre o amor com a capa da tristeza. Eu amava, e era feliz, através dessa tristeza brincada. Por isso esses textos tristes me são tão preciosos mais tarde, quando olho-me de volta com ares de espetáculo, Eu, espectador do mundo – tudo tão emocionante, divertido, bonito. Eu, o Adulto do devir, pretendo não existir completamente, nunca, mas sempre ao lado desses meus companheiros, leais escudeiros, minhas tempestades, nuvens, musgos, algodões, livros, copos, textos, palavras. Chegarei ao inferno quando estiver procurando o significado real das palavras, ou me pautando por eles, não por elas.

E então, quando eu a convido a subir no meu palco, a brincar comigo, você se torna bruxa, pega sua vassoura, e joga pó de lagartixa e patas de dragão em todo o meu cenário, deixa todos os meus figurinos com cheiro de mofo – e ainda pensa estar assim, me batendo toda vez que acendo uma lâmpada, me fazendo um favor!

(E está mesmo)

O que eu escrevo está sempre sendo, se processando, correndo; nunca é. Você transforma tudo em é, é, é. Eu sei, eu sei, é claro que eu sei que mil vezes antes um texto esteticamente feio que um ideologicamente burro, eu aprendi isso, eu aprendi isso, mas eu, mas eu, mas eu sou Criança, ainda não entendo disso de ideologia, você precisa me ajudar, e não procurar o que tá errado. Mesmo que isso seja ajudar. Falta um monte de coisas no meu texto, falta nexo, falta inteligência, falta propósito, falta meta, falta tanto, mas se eu fosse fazer uma lista das coisas que faltam, só a minha imaginação imporia limites. Eu não quero descobrir o que falta, porque sempre falta infinito, quero brincar com o que tem, com o que está tendo, sendo, querendo. Criança assim.

Mas sabe, de tudo que eu tenho a reclamar de você – ignorando os 80% de projeção – o mais importante, o que eu mais quero dizer é a feiúra. Não ter um Eu-lírico é tão bonito, é tão real, eu fico aqui olhando pra carne viva estampada em toda você, e vejo seu sangue circulando e o jeito como você conduz sua respiração e entorta a coluna e os lábios pra falar -  você toda jeitosa com seu jeito de tentar não ter jeito. Mas é feio, quando você fica assim, me lendo aos avessos, se cansando de si, procurando todas as feiúras que nós temos em comum, em vez de deitar à sombra das nossas semelhanças – pelo menos quando eu lhe peço deitar, quando eu aqui cansado, fatigado, pedindo colo e carinho. Será mesmo que você vai me castigar nesses exatos momentos estendendo-me sua cama mais dura? Como você consegue? Como você consegue você mesma deitar em sua cama mais dura? Eu a invejo, se isso for verdade. Mas eu não quero ser você, porque você parece que perdeu a vontade e a chance de ser bonita. Eu, Pai de duas, tive vontade de ter mais uma toda linda filha que nem minhas duas outras só para compensar você. Ai eu, Lobo, dei um patada, e arranhei as minhas filhas, que estavam sendo paparicadas e infantilizadas, que eu tava sendo muito criança. Ah, não. Foi isso que lhe aconteceu? Veio-lhe um lobo?

Ah não. Ah, não. Me lê, me erra, mas não. Não, não, não.

2 comentários:

  1. minha cama mais dura: não consigo deixar de ver como esse texto é bonito. exatamente essa palavra. contudo, é sobre essa cama mais dura que deito ao seu lado, sob a sombra que nós mesmos "projetamos". ao menos, te ofereço o lado que é mais próximo a porta, o lado em que te ouço. monstro-bruxa e lobo-nazista. ambos estamos aqui, "nos arriscando a nos perdermos, de duas formas diferentes, ao explicar um ao outro o que não queremos ouvir", e desexplicar, ao todo, todo o resto.

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