1 de julho de 2010

O ‘tornar irresponsável’ (de que não gostei) + Introdução metalingüística + O ‘tornar irresponsável’ (versão 1,5)

Ontem à noite, assisti a um show de violões no municipal. Um trio. Numa música, que creio ter sido Olha Maria, eu me entreguei completamente, e consegui ir lá pra dentro de mim, num dos lugares mais bonitos que existem – provavelmente um cômodo da minha alma. Lá, comecei a escrever um texto bonito, desses que dão orgulho. Um orgulho semehlante àquele que senti depois de assistir Cinema Paradiso, por exemplo, ou aO Fantasma da Ópera, ou quando li Através do Espelho (de Gaarder),  algo a que eu só consigo me referir como Capacidade de Sentir – uma sensibilidade - o que é no mínimo paradoxal, senão simplesmente risível, quando o contexto é outro que não Arte. Porque não há motivo maior para o meu fracasso em conseguir manter um relacionamento funcional do que a dificuldade de sentir. Mas é verdade que, se me perguntam do que eu mais me orgulho em mim, eu respondo Minha sensibilidade.

Parei numa frase que, de tão importante que a achei, fiquei murmurando pra mim mesmo, morrendo de medo de que a esquecesse. Após o show pude anotá-la em meu celular. Era: O que é a responsabilidade senão um nome à parte do poder de Deus que nos cabe? O texto tomou alguma forma, ganhou título, já não sei mais se na profundidade do meu sentimento, ou se depois, durante meus sonhos. Mas sei que queria muito escrevê-lo, não tão diferentemente do sonho que tentamos lembrar. Hoje, com disposição, eu tive espaço e tempo de escrever. Mas, incapaz de colocar sentimentos nas minhas palavras, escrevi um texto dissertativo demais, apesar das camadas de literatura e autobiografia que o permeiam, de que gosto muito. Ele aqui:

Quando alguém comete um erro ou nos machuca, dói muito mais uma eventual reação apática do alguém do que o próprio erro ou machucado. Dói muito mais quando o alguém não se toma por responsável pela dor infligida. Nós nos machucamos com a falta de responsabilidade do outro.

Ser responsável por algo ou alguém é das mais pesadas tarefas, porque há uma relação direta com a nossa competência de cuidar do algo e, portanto, com a imagem que temos da nossa própria força e capcidade. E, é claro, com a culpa – que talvez nada mais seja do que o encontro com a própria fraqueza. Franqueza.

Esquivar da responsabilidade é, portanto, esquivar do eventual confronto dos próprios limites, da finitude de si. Provavelmente com esse bonito sentimento, de fazê-los infinitos, muitos pais privam ao máximo seus filhos de responsabilidades .

A crueldade desse romantismo que se atribui à geração vindoura, dessa idealização da infância, dessa transferência de sonhos à prole, é raramente reparada. O ápice desse processo se encontra na desapropriação de si mesmo – em que nem pelo próprio corpo tem a criança condições de zelar.

A isso, mesmo a barbárie capitalista serviria, numa idéia de que o próprio corpo é uma propriedade, que deve ser cuidada, estimada, em que se deve investir.

Esse sorriso com que brinca a criança de cair, é o mesmo presente no choro quando percebe ela, já adolescente, que não olhar por onde se anda pode fazê-la esbarrar em alguém. Talvez fazer esse outro alguém cair.

Os pais, ao cuidar desses pequenos jardins, não podem viver por eles, através deles. Porque aí esses eles não vivem. Não tomar responsabilidade pelo que se é, pelo que se faz, é muito próximo de não viver.

Tornar irresponsável é causar sofrimento. Porque, de repente, no meio de uma noite estrelada, nem as estrelas nem a noite lhe são de posse, cuido, ou contemplação. Nada disso lhe pertence. Nada disso é de sua responsabilidade. O próprio prazer, tampouco. A própria dor, tampouco.

Tirar o poder da criança sobre as coisas, torná-la a todo tempo dependente e obediente, bem-educada e amistosa, temente e cumpridora, é destituí-la de força para, por exemplo, realizar os sonhos que você, pai, não pôde realizar. Pois ser responsável por algo, é, sim, ter poder sobre algo.

Aquele que faz uma obra de arte, mas não se sente por ela responsável, é tão feio e desprezível quanto aquele outro que me machucou, mas que não se admite responsável pelo meu sofrimento.

O que é a responsabilidade senão um nome à parte do poder de Deus que nos cabe?

Tão longe era meu texto da frase que eu anotei, que ela, a frase, teve de ficar isolada, sem ligação ao resto do texto, sem continuação, ali, crua, sem adubo, sem raiz. Eu quis chamar esse texto de “O ‘tornar irresponsável’ versão 3”, pois essa definitivamente não é a versão 1, que eu quero atingir.

Ao mesmo tempo, eu não consegui dormir. Precisava dialogar comigo mesmo e é exatamente isso que faço aqui. Por isso esse texto é tão agridoce. Ele não é bom. Esses diálogos são invasivos. São íntimos demais. Porque eles são o diálogo que eu tenho comigo mesmo na cama, ouvindo meu coração bater, me impelindo a algo maior e maior. A tomar responsabilidade, nem que fosse por um texto. Uma pena que, com a metalinguagem, eu só consiga fazer o contrário e further and further me desresponsabilizar.

O que é a responsabilidade senão um nome à parte do poder de Deus que nos cabe? Pois ser responsável por algo implica em ter poder sobre o rumo que esse algo irá tomar; um poder sobre o destino das coisas, se assim se quiser dizer. É um poder de criar coisas, de guiar coisas, de salvar coisas. É o poder de Deus, distribuído a cada um de nós.

Não há nada mais bonito do que ser responsável. E, mesmo que eu use as palavras Deus e Poder – assustadoras, eu confesso –, é bonito. Afinal, é preciso que eu pare de temer as palavras, sejam elas Política, filosofia, irracional, Deus, poder, verdade, mentira, responsabilidade, amor, Homem, Mulher, adulto. Eu estou desaprendendo a ter medo. (Porque, né?, medo se aprende.)

É preciso que os filhos desse mundo tomem coragem de ser responsáveis, que os filhos desse mundo não temam tomar esse mundo como seu, numa posse que não implica em propriedade, mas em responsabilidade. Palavras, palavras. É preciso que se veja que o mundo não pode, não tem como, ser tão medonho assim. Nada pode ser tão difícil quanto isso que você imagina. A prova disso o está esperando numa música, possível, tocada ali na frente, por três pessoas que resolveram pegar um pouco da beleza do mundo pra si, e ainda me permitir acessá-la. A prova disso está nesse sorriso-choro que o carrega e consome. Que traz, lá de tão longe-perto, o melhor que há em você. Aquilo de que, inevitável e justamente, você se orgulha. De que você se sente responsável. Você não choraria, se não se sentisse responsável por essa beleza que ouve. É essa sua capacidade, de ser co-responsável por essas belezas todas, que o faz ter asas tão grandes, tão esbeltas.

Não há nada mais bonito ou prazeroso do que ser responsável. Aliás, só podem ser sentidos a beleza e o prazer, ao ser responsável. Se não, é só… comoção? Não sei, há poucas palavras. É bom poder deitar, satisfeito por finalmente ter tomado responsabilidade. Mesmo que esse texto seja, em parte, íntimo demais, por erros da linguagem, por dificuldade de sentir, por eu não me tocar. Não é linda essa expressão? “Se toca”? Apesar do erro de concordância e da próclise? Okay, isso foi brincando. Boa noite, meus amores.

Um comentário:

  1. Stefan, é um belo texto! Há muito mais, porém.
    Aí penso: o que resta, no fim, não é a beleza? Então é isso que tenho a dizer.

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