12 de fevereiro de 2013

Fazendo as pazes com a solidão

Havia um tempo em que era apenas eu. Eu acho que eu cheguei a escrever nesse tempo e é provável que eu o encontre em fragmentos antigos, os meus garranchos evidenciando minha idade imatura. Eu ficava à noite sozinho olhando pros céus, do lado de fora da casa, e eu tinha apenas os meus pensamentos como companhia. Às vezes eu experimentava respirar diferente, às vezes eu subia no parapeito, às vezes eu entrava na piscina, às vezes eu tocava violão pra lua, às vezes eu ficava pelado. Eu sinto saudades daquela casa. Que não é mais minha. Eu nunca chorei por aquela casa. Eu tenho tanto por chorar. Eu chorei muito em volta daquela piscina. E eu pensei tanto. E eu me dava bem comigo mesmo. A minha mente era, e continua sendo, muito traiçoeira e terrível. Distorcia as coisas, mudava-as de lugar, fazia-me um merda. Mas, assim como eu tinha essa mente torturada, eu também tinha vários jeitos de me sentir melhor. Ou talvez eu só os tenha desenvolvido precisamente porque eu tinha essa solidão a meu dispor. Eu era sozinho. E a minha solidão foi muitas vezes fonte de grandes prazeres. De grandes alívios. Ai, é verdade, eu sofria muito. Mas não era a minha solidão minha inimiga. Não… E eu acho que eu a tomei por inimiga. Eu gosto de pensar que boa parte das minhas qualidades, inclusive das qualidades que me fazem ser amado, é de responsabilidade minha… Que eu batalhei por essas qualidades a custo de muita solidão. Porque é lindo o homem que consegue viver consigo mesmo. É lindo o homem que sabe que contém em si um inimigo à espreita, mas que o vence com um olhar penetrante e alguns momentos de silêncio. AI! Quando e por que eu fiz do silêncio um inimigo? É verdade, eu falava muito pouco. É verdade, eu era assimétrico nas minhas conversas – e ainda sou. Mas isso não tinha nada a ver com o silêncio que eu gostava de cultivar… Que não era silêncio: eu freqüentemente falava sozinho em voz alta, escutava música alta, cantava alto, ou chorava baixinho. Silêncio e solidão. É, eu definitivamente já escrevi sobre isso. Eu estou revivendo algumas coisas agora. Eu estou fazendo as pazes com amigos antigos, que confundi por inimigos nos últimos anos. Eu estou reganhando a capacidade de fazer, sozinho, com que eu arrepie os pêlos. Isto é, com que eu cause em mim mesmo emoções e sensações fortes. Porque a minha solidão nunca representou uma diminuição da minha capacidade de sentir as coisas. Pelo contrário: várias vezes foi apenas nela e através dela que eu podia sentir. Maldito aquele que me disse que é inútil o sentimento que não é comunicado. Maldito egocêntrico aquele que não suportava o meu silêncio. É verdade, eu tinha sérias e profundas e difíceis cicatrizes que me tornavam desprazeroso comunicar-me com os outros… Eu ainda tenho. Eu ainda sinto vergonha dos meus sentimentos, e ainda é difícil comunicá-los. Mas isso não significa que eu não deva me esforçar por senti-los, do jeito que me for possível. Desse jeito só e silencioso que eu fazia à beira da minha antiga piscina. Escrevendo esses textos difíceis de se decifrar, que não falam sobre os sentimentos, mas como que os indicam, às beiradas, tangencialmente os indicam. É um texto que busca amigos. Amigos na solidão. É na solidão que eu me perdôo, porque é nela que eu percebo a maneira como por tanto tempo eu fui abusado e os motivos que me levaram a me expressar desses jeitos mais tortos e impenetráveis. Eu consigo ver a formação da minha couraça e o momento em que eu a chamei de armadura – e também o momento em que eu me ressenti de tê-la criado. O momento em que eu ressenti ter nascido, porque dói muito. E no entanto… eu sou tão normal. Eu pareço tão bem estruturado. Eu não sôo como esses adolescentes sofredores que morrem todas as noites. Eu sôo… Eu sôo como um soldado voltado de guerra. A psiquê toda fraturada… a capacidade para o prazer profundamente abalada e o sentido da vida e a crença em deus… irrecuperáveis. De que serve um soldado em tempos de paz? Pra que sirvo? Os beijos que me dão, eu os sinto como panos umedecidos colocados por sobre minhas feridas: carinhosos, é verdade, mas um alívio muito mais do que um prazer. E no entanto… eu amo tão intensamente. Quem são esses personagens que te habitam e que você tenta expulsar? Esse padre, essa mulher que apanha, esse veterano de guerra, esse filósofo, esse semideus. Eles precisam de espaço -  e eles não vão te matar. Dar-lhes espaço não vai ameaçar ninguém, definitivamente não a você. Eu concordo: esse homem que vive sozinho, à noite, soturno e lupino, conversando consigo mesmo, não é homem que vai ser amado, violentamente amado, por uma grande mulher (talvez por um amigo). Mas você pode guardar com toda a certeza no seu coração que ele é essencial para que você se torne amável. Ele te torna grande, principalmente porque ele é parte de você. E como é lindo o homem que dá as boas-vindas a todas as suas partes. O que é esse texto e pra quê ele serve? Acho que ele serve para mostrar que eu ainda estou aqui, que eu ainda te amo, que eu ainda tenho muito carinho por ti, e que você sempre pode contar comigo… Basta um pouco de silêncio. Eu prometo tentar te ajudar. Eu sou uma parte de você. É impressionante como a sua capacidade de amar aumenta, quando você se ouve e se acolhe um pouco. Eu sempre vou te acolher. Os que te abusaram moram no seu passado e eles não podem mais me te ferir, porque eu não vou deixar. Basta que fiquemos juntos. Juntos somos mais bonitos e mais fortes. Mas é preciso que você me receba. São meus amigos todos aqueles que se acolheram, que se permitiram ser acolhidos. Eu amo todos vocês.

Um comentário:

  1. "Tu não respondeste nada. Os teus olhos azuis, ainda estremunhados, o teu cabelo espalhado ao vento em todas as direcções, a tua cara de sono, de menina pequena, respondiam por ti – e, caramba, como tu ficavas bonita assim, sem precisares de dizer o que quer que fosse! Apenas a olhar em frente, como te tinha visto fazer todos aquelas dias, no banco
    ao lado do meu no jipe. Tu falavas pouco e essa era uma das coisas que eu gostava em ti. Quando tudo era bonito demais ou duro demais, tu ficavas calada a olhar silenciosamente. Falámos sobre isso uma vez, e eu disse-te que a vida me tinha ensinado que fácil era o ruído, as conversas sem sentido, a banalidade das palavras ditas sem necessidade alguma. De nós os dois, tu eras, sem dúvida alguma, a mais calma, a mais feliz tranquilamente. A mais atente, a mais disponível para o vazio e o silêncio."

    ("No teu deserto", de Miguel Sousa Tavares,)

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