23 de janeiro de 2017

Prece tardia

Fazer-se é labuta diária. Anos, décadas!, passaste acumulando vermes e vícios dentro de ti — crês que em um súbito livro, um súbito amor, súbita dieta, recuperas-te assim impunemente? Teu sofrimento foi criado; criada também deve ser tua alegria. Construída, bloco a bloco, como tudo o mais. Engenheiros da alma somos nós! E sim, meu caro, teu edifício desmoronará e repetidas vezes cairás, como que de volta à estaca zero. Mas lembra-te de que nunca caímos no mesmo lugar do qual saltáramos, pois heraclitianos somos nós e rápido é o rio em que nos banhamos. Esquenta-te por dentro com tuas memórias e consola-te com as pequenas vitórias. Sê caridoso com tuas falhas de homem, posto que és homem e homens falham. Ama-te como às belas palavras és capaz de amar — transforma-te em palavra se necessário for! — usa e abusa da segunda pessoa pra falar de ti mesmo, como se fosses dois e não um, pois em realidade és dois mesmo, três até, infinitos eus és: Zeus és. Faz a alma cantar e nina-te como deverias ter sido ninado. Respeita o que de criança guardas em ti e brinca, sempre que possível, para que não padeças da tua seriedade, que é contagiosa e perigosa. Dá aos amigos a graça e enxerga neles beleza quando a visão deles se nublar: sê para eles o que para ti mesmo um dia serás (pai e professor, guia e exemplo, inspiração e consolo). Corre e pula, como cão ingênuo fosses, porque dos ingênuos é o reino de deus. Observa as árvores e as pessoas, encarna-te em ti mesmo como se a cada dia renascesses. Deseja teu corpo como teu corpo deseja outros corpos. Pensa, mesmo que demasiado, cuidando para não acumular vergonha, pois a cabeça é lugar difícil de aspirar sujeiras assim. Senta e descansa de vez em quando, mas sempre um pouco menos do que for preciso, pois urge viver e dói mais o tédio do que o cansaço. Escreve, tu que és íntimo da pena, porque quando escreves te aumentas e tu por tempo demais te fizeste pequeno. Dá-me a mão e chora, chora tudo o que quiseres, abre espaço para as lágrimas como fazem os súditos ao rei — e as degola quando forem tiranas, como fazem os súditos ao rei. Ri de ti mesmo quando acreditares em besteiras, porque é de besteiras que se vive, ora acreditando ora superando, e chacoalha-te sem nojo nem arrependimento daquilo que antes ridiculamente trajavas: pois ridículos todos somos e é apesar de sermos ridículos que somos grandes (tudo que é grande é um pouco ridículo e um pouco patético). Não te incomodes tanto com o que não consegues dizer, porque a mudez também tem seu tempo e seu porquê e é ao seu modo também bela. Sobretudo respira e deixa entrar o mundo em ti, sem medo, para que possas finalmente pertencer, sem contudo enrijecer. Queima e vive! Ama e chora. Dá e recebe. Amém.

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