Pergunte ao cansaço:
— O que se esconde por baixo de ti?
E tome cuidado com a resposta.
Pergunte ao cansaço:
— O que se esconde por baixo de ti?
E tome cuidado com a resposta.
De quantas coisas padecemos porque não nos deixamos por elas afetar? Quanto do que hoje é veneno não seria bálsamo se corretamente digerido — em pequenas quantidades e antes do prazo da validade —? Quem se faz de dispensa de sentimentos, quem os tranca sem contato com o sol do corpo, quem não tem no seu arsenal bons temperos para lhes conservar a qualidade; — ora! impressiona mesmo que homem assim se torne paraíso para todos os ratos da alma? Que o seu interior se torne uma cultura de vermes e fungos? Falta-lhe o básico de uma higiene espiritual!, vive ele como um moderno sem geladeira, deixando estragar tudo aquilo que lhe deveria servir de alimento, incapaz que é de calcular de quanta comida precisará hoje. Nesses casos, em que se tem o interior todo estragado, a abstinência ascética se justifica: quanto menos contato com a podridão aí, melhor. Mas o consumo não precisa apodrecer: recuperemos com os sábios a arte de comer e a de não comer, a de digerir e a de jogar fora, a de sentir! sem adoecer.
Não desviar o olhar de si: acostumar-se com o frio interior. Sem se confortar, mas sem se lamentar. Chorar se necessário, mas com moderação. Recusar a comida e qualquer prazer fácil (jejuar). Cuidar de si. Só chamar o outro caso seja possível a sinceridade. Se não, aguentar (esperar). Ninar-se. Esquentar-se. Sozinho, sozinho. Desistir de ganhar da dor. Aceitar-se. Chegar mais rápido ao "fundo do poço", para que a única opção seja subir. Lembrar-se do fundo do poço, com força. Pensar na subida, pensar na montanha. Subir. Amar-se. Amar.
O maior erro que os homens cometem ao chegar à adultice é o de considerarem-se acabados. De uma hora para outra, devido a uma mistura de cansaço e arrogância, eles param de considerar o mundo um lugar de novidades e encerram as coisas da vida em si mesmas, dando-lhes um caráter estático e compreensível. Como se fossem um arquivo somente-leitura nos computadores de Deus, já escrito e para sempre imodificável. Esquecem que os deuses somos nós e que acima de tudo o arquivo de nossas vidas encontra-se aberto à nossa frente aguardando o nosso input, sensível a tudo o que lhe fazemos. Mais: o software em que rodamos é completamente open source, apenas esperando o nosso código — nós, eternos programadores! Hackeável é o mundo nas nossas mãos e com o código da vida devemos brincar, sempre adicionando umas linhas aqui e ali, sempre tentando descobrir novas capacidades, novas eficiências, novos sentimentos, novas aventuras. Programas morrem quando paramos de desenvolvê-los: não nos transformemos em abandonware.
O amor não se pede, apenas se dá. Os bebês pedem amor, é verdade, mas chorar pedindo amor seria para nós, adultos, uma humilhação, pois sentimos no nosso íntimo que todo pedido carrega consigo um pouco de violência, e ser amado apenas porque se pediu nos pareceria como forçar o outro a nos amar — e isso não queremos. Queremos ser amados pelo que nós somos e como que espontaneamente, sem que precisemos pedir. Mas carecemos de amor e o desejamos.
A solução histérica é continuar pedindo amor e recebê-lo em gotas insignificantes, e pedi-lo cada vez mais até que venha a frustração por não ser (e nunca é) o suficiente.
A solução deprimida é aceitar a derrota e parar de pedi-lo, para, uma vez acostumado com não o ter, acreditar que nunca o terá nem nunca o teria, até uma hora definhar.
A solução obssessivo-compulsiva é tentar encontrar em si algo de errado para nutrir a esperança de que, uma vez aquilo consertado, o amor virá — até que o cansaço vença esse ineganhável jogo de gato-e-rato.
A solução fálico-narcisista é tomá-lo à força, pois ele já se acredita (e tem que se acreditar) amável e amado, de forma que exigir o amor não é senão fazer valer um direito natural, como quem pede o troco merecido. Termina, efetivado ou não o estupro, em desilusão e impotência.
Como se sabe, nenhuma dessas soluções soluciona coisa alguma. Qual deverá ser o nosso caminho se quisermos amar e ser amados de forma saudável? Uma coisa eu sei: se amor é algo que apenas se dá, é preciso então que sejamos capazes de nós mesmos dar amor — tornarmo-nos fontes do amor de que carecemos. Talvez algo como uma solução narcisista-vaginal: narcisista, porque o movimento vai de si em direção a si mesmo; vaginal, porque se foca no recebimento, não na tomada. Talvez devamos ser um pouco histéricos e pedir amor, sim: mas pedi-lo a nós mesmos. O Deus que tudo aceita e tudo ama, essa grande e resistente ilusão da humanidade (uma criação compulsiva, diga-se), nós mesmos devemos sê-lo — com o cuidado, para o qual já alertei antes, de sermos um pouco mais responsáveis que Ele. Não queremos, afinal, amar todas as partes de nós mesmos igualmente, pois nos reservamos a capacidade e o direito de julgar e escolher. Sentir-se preenchido de amor, sem o segurar nem conter. Desistir de controlá-lo. Permitir que transborde. Que flua.
Seja lá qual for o caminho, não será fácil. Desejo a todos, a mim principalmente, paciência e coragem. Que não nos falte aquele olhar gentil, de que só nós somos capazes.
No frio, somos nós que produzimos o próprio calor. Venceremos o inverno. Durma bem, querido.
Em muitos sentidos, é preciso de mais coragem para falar das coisas banais da vida do que das grandiosas. Nas grandiosas, fala-se a língua do vento, pode-se ser sutil, tocar quem não se pretendia tocar, de modos que não se imaginava tocar. Dá-se liberdade às palavras de fazerem o que elas fazem: mover os outros, à sua maneira. Usamos metáforas e metonímias e cem mil jogos de linguagem podemos usar para tornar mais sutil ou mais vago o que dizemos, de forma que se torne mais universal e possa ter um alcance maior de leitores e de espíritos. É isso o que os escritores fazem, e não há mal algum nisso.
Mas para contar de um dia banal, para ser sincero em relação ao que há de escuro e entediante e simplório e pequeno na nossa alma, aí é preciso, também, usar de palavras escuras e entediantes e simplórias e pequenas. Para o escritor, bicho orgulhoso que é, isso é assustador. Suas palavras grandiosas são seu escudo e usar palavras simples é para ele como tirar as roupas. Vulnerável fica, envergonhado, perde a graça do movimento, age como criança terrivelmente embaraçada no vestuário errado. Tudo parece pecado e cada passo parece ser vigiado e a qualquer momento pressente-se uma punição — de onde? não se sabe. Mas essa consciência aguda demais do tempo presente, esse não-conseguir-sair-da-própria-vergonha é a pior prisão. Por isso devemos admirar os escritores que escrevem simples. Não que a simplicidade seja a virtude máxima, nem a única, mas devemos admirar aqueles que se dão à coragem de escrever sobre as coisas simples, nus a enfrentar a vergonha.
— E o que se te passou hoje de tão banal e escuro que precisas de dois parágrafos inteiros apenas para prefaciá-lo? — pergunta o veterano com olhos gentis, mas ainda um pouco perdidos.
— Hoje eu retomei uma escuridão de tempos passados, que deveriam estar remotos. Sim, eu sei, eu sei, eu sei que essas coisas não simplesmente passam e que todos os tempos estão sempre vivos ao mesmo tempo, eu também fiz as mesmas lições que você, não é desses consolos simples que preciso nesse momento. Preciso contar a minha banalidade, diretamente e sem rodeios, sem buscar nela uma lição, sem tentar fazer desse momento uma aprendizagem ou trampolim.
— Pois bem. Continua, então.
— Nada é novo, como disse, tudo é repetição, tudo era conhecido. Desde sábado passado, quando voltei do Pilates, lembra-te de que eu tive um mau dia e como que me deitei no banho morno das minhas compulsões, retornando em parte aos meus tempos de deprimido?
— Sim, claro. Disseste que se sentia sem energia nem motivação, que nada tinhas vontade de fazer senão talvez de jogar um videogame compulsivo, desses em que se pode ver os números aumentando, e comer, é claro: falaste bastante sobre como comeste compulsivamente, devorando tudo que encontravas, comias sem respeitar o apetite e sem se dar tempo para sentir o gosto das coisas. Foi nessa noite, creio, que tu pegaste um pedaço enorme de queijo, desses que dariam para umas 30 torradas, e comeste-o, de pedaço em pedaço, como quem come a uma maçã. Não é de espantar essas espinhas em teu rosto…
— Sim, minhas espinhas. Bom você ter falado nelas, porque creio serem importantes. Como tenho comido muito mal, era natural de se esperar que voltassem assim. Não imaginei, no entanto, que seriam tantas e tão feias. Senti-me adolescente de novo, e tu sabes quais sentimentos tenho em relação à minha adolescência.
— Sei que te sentias feio, inadequado e pouco vivido. Desinteressante, arrogante e frio. Um verdadeiro contraste com o que diziam tuas cartas e as de teus professores…
— Quem eu era de fato não importa agora. Importa como eu me via, a imagem que tinha de mim mesmo. E essa era a pior de todas. Sentia-me extremamente feio, e ao mesmo tempo não podia admitir a mim mesmo que sentia isso, porque eu condenava de antemão todo julgamento que visava à beleza. Aprendi que a beleza era errado e, de certa forma, cheguei inclusive a me orgulhar de ser feio, porque era um pecado a menos que eu tinha. Uma grande violência contra mim isso, pois a verdade, que descobri depois nas letras, era que eu gostava sim da beleza, e muito.
— Sim, e que se nota nos teus belos t—
— Não me bajules! — interrompi. — Eu me sentia feio e inadequado e não apenas “pouco vivido”: eu sentia que nunca iria viver plenamente. Eu desistira. A vida se tornara vazio em que vez ou outra se mergulhava em busca de algum prazer que desse sustento ao dia, à semana. Mas esperança real, fé em si mesmo e no amanhã? Nada disso havia.
— Havia sim, quando lias um texto bonito. Ou quando um filme te tocava a alma.
— Sim… tens razão. Mas os meus dias banais, é deles que estou falando, os meus dias banais passavam-se vazios, escuros. Procurei preencher alguns deles com leituras, com encontros vãos, e tive algum sucesso. Pensei algumas coisas, desenvolvi a alma e o pensamento, tornei-me internamente mais potente (até certa medida), mas meu cotidiano ainda era sombrio. Como se eu passasse os dias inteiros como que dormindo, vivendo num discreto piloto automático, sem assumir responsabilidade pela minha vida, sem ser com nenhuma intensidade.
— Como aquele filme do Adam Sandler, né?
—…
— Qual é? Não estamos aqui nos abrindo à vergonha e à banalidade? Pondo abaixo nossos escudos, permitindo-nos o vergonhoso, o vil, o baixo?
— Sim, mais uma vez tens razão. Como aquele filme do Adam Sandler, sim, que muito me fez chorar. Apenas a arte me chacoalhava desse estado de automatismo. Apenas a arte e as boas conversas com amigos (que eram raras).
— Mas voltemos a falar de tuas espinhas. Disseste que eram importantes.
— Importantes de forma banal, sim, mas importantes. É que essa sensação que eu carregava na adolescência — de não ser bonito, de não ser adequado, de não saber viver, de não ter futuro, de não ter esperança — ela não foi criada na adolescência. É ainda mais antiga. Na adolescência foram as espinhas, as faltas de relacionamento, a falta de jeito nas danças, o desconforto com o álcool, esses eram só os elementos à disposição para que viessem à luz conflitos bem mais anteriores: de que eu não me sentia amável, de que me sentia covarde, de que eu não merecia a felicidade. Em particular, também, foi na adolescência que essas questões foram mais explicitamente sexualizadas: eu não merecia o toque de uma mulher, eu não tinha a coragem de me relacionar com uma mulher, eu não merecia a felicidade no amor.
— Não exageras um pouco, ao fazer essa exegese toda da tua adolescência?
— Sim, talvez, mas não me incomodo. Vou chegar a algum lugar.
— Prossegue, então.
— Acontece que eu contribui ativamente para que meu destino fosse esse mesmo que eu profetizava. Ficar horas e horas na frente do computador não era um jeito de me tornar mais bonito nem mais corajoso, afinal, né? Somente mais tarde dei-me o trabalho de investir na única coisa que me aproximava de mim mesmo: a arte. E a verdade é que cheguei a viver um relacionamento sim; algumas coragens eu tive, a muito custo, a muito sofrimento. Abrir-se para o amor não é fácil.
— E, se me permites a colocação, tu não apenas te abriste… Mas te escancaraste mesmo, com violência vulcânica. Foi bem incrível de se ver, meu caro.
— Esqueço que você estava lá para ver. Agradeço os elogios. Deixa eu continuar. Assim como na minha adolescência e assim como no meu período recente de depressão, hoje eu também contribui ativamente para que eu permanecesse na penumbra. Claro que até certa medida nós somos escravos dos nossos sentimentos, mas eu já não estou tão deprimido como antes… Já posso tomar algumas decisões em nome de mim mesmo, ser comigo um pouco autoritário. Por que, então, eu tive tanto medo? Por que senti tanto medo de viver, de me amar, de me proteger? Por que preferi me desgastar, me sombrear, me afundar, me perder?
— Não tinhas ainda mencionado o medo. De onde veio?
— Tenho certeza de que era medo, por causa da noite anterior. Eu recebera uma mensagem que eu sabia ser linda, sabia ser elogiosa, sabia vir do meu amor e falar sobre algo que eu lhe tinha escrito, e sabia que era feliz e amorosa. E o meu impulso foi o de não abrir a mensagem, guardar o celular e deitar, para adormecer o mais rápido possível. Para que aquilo não fosse uma realidade com a qual eu tivesse de lidar.
— Então não são só as realidades ruins de que foges?
— Aparentemente não! Quantas noites não desejei ter exatamente isso, meu amigo? Ser reconhecido pela minha escrita, recompensado pela minha sensibilidade, ser visto na minha beleza? Ser acompanhado de um amor, ser amado? Tudo isso eu tive e meu impulso foi — — de virar pro lado e dormir?!! Felizmente eu não anui e fui, sim, ler a mensagem, que logo virou doce conversa. Talvez não tão presente quanto fosse possível, mas doce e agradável certamente. Ao dormir, eu podia dizer a mim mesmo que era amado. Mas repara: era preciso que eu dissesse isso, porque sentir eu não sentia. Não lembro se sonhei, mas acho possível que eu tenha tido pesadelos. Como se meu corpo se revoltasse contra o amor que eu recebia! “Não mereço”, ele grita. “Não pode ser real”. Tem de haver algum bug.
— E então, de dia, comer compulsivamente, dormir compulsivamente, jogar videogames compulsivamente… crês que foram maneiras de confirmar essa tese sombria? De provar que, de fato, tu não mereces amor assim, e que ele não pode portanto ser real?
— Sim, meu amigo, é isso o que acho. Uma verdadeira sabotagem de mim mesmo, eu trabalhando (e nem tão inconscientemente assim) contra mim mesmo. Porque eu sou mais confortável na posição de desamado, de desmerecedor. Essa posição de ser amado exige muita responsabilidade, muito corpo, muita vida. E eu não tenho! Não vou aguentar. Como não aguento cinco minutos de sexo com ela, não vou aguentar ser amado por dias e eternidades e poemas. Lindo foi o texto que ela me escreveu, todos eles, mas eu não aguento lê-los porque não aguento a sensação de ser amado! Me sinto uma farsa, incapaz, inadequado, feio, um estorvo para o mundo, para ela, tudo seria melhor se nada disso existisse, se tudo se explodisse, se minha vida acabasse aqui. Ou, em termos mais realistas: se eu comesse, não uma nem duas nem três, mas quatro salsichas, regadas a ketchup. E depois comesse 3 ou 4 paçocas (quantas foram?). E depois assistisse personas sem graça na internet jogando um jogo objetivamente mal feito. E depois me masturbasse cheio de auto-desprezo, usando imagens de pessoas que eu não poderia conhecer senão por meio de um contrato sujo e problemático. E depois dormisse, não por leve torpor seguido ao orgasmo (que não houve, pois masturbação assim não dá prazer: meramente alivia), mas por tédio, tédio e falta de vontade de viver.
— Interessante essa sua fala, pois que começou falando de amor e sexo e terminou falando de compulsões diárias. Achas mesmo que estão tão intimamente relacionados assim?
— Sim, acho sim. Acho que a abertura ao amor, inclusive ao amor próprio, é condição para aquele perene sentimento de saúde, aquele gostoso sentimento de ser a si mesmo, de ser o próprio corpo, de ter sensações e de poder sentir o ambiente. Na falta dessa abertura para o amor, todas as outras saúdes desandam, pois que o amor é a base sobre a qual todas as outras se edificam.
— Amor não seria algo demasiado abstrato para que servisse de base para sua saúde gástrica, seu suor cutâneo, sua tensão genital? Essas coisas não são — —
— Muito mais corpóreas? São sim. Mas é que o amor é corpóreo. Não tem nada de abstrato nele. Amor é toque, carinho e calor. Sensações de que eu careci na primeira infância ou nas quais não pude acreditar totalmente. Que então justifiquei na adolescência. E proibi na depressão. Tudo isso volta a esse amor, basilar, antigo, infantilíssimo. E eu não consegui, como outras vezes nos últimos meses, me chacoalhar desse desamor e declarar para mim mesmo, com autoridade: “És amável, Stefan. O teu amor te ama e nela acreditas. Tu a amas também e nesse sentimento acreditas. Abre o peito para receber em ti esse carinho e calor. Ama-te”. Claro, a conversa da noite passada não atrapalhou, eu de fato lembro de que sou amado, mas não sinto. Percebe a fissão? A forma como não me identifico comigo mesmo? Um alguém assim não pode mesmo se defender, pois vai defender o quê? Se ele não se reconhece em si mesmo…
— Isso tudo parecem discussão tão antigas na tua jornada. Como se já tivesses escrito sobre elas milhares de vezes.
— Sim, é verdade. Acho que já, sim. Mas é que as coisas se repetem mesmo. E eu não sou o mesmo. E este texto aqui não é o mesmo que outrora. É importante escrevê-lo, eu sinto.
— Sim, sim. Mas, se me permites a colocação, tu não estás mais nessa posição fetal de antes, correto? Já te animas por dentro e já te amas, pelo menos um pouquinho, já tomaste coragem para escrever um texto como esse, tão explícito e banal. Algo mudou, não é mesmo? O que fizeste para sair de teu estado deprimido? Meu projeto de décadas, afinal, é o de desenvolver um bálsamo para esses estados indesejáveis da alma.
— Ah, meu amigo alquimista, eu bem conheço teu projeto. Não penses que te abandonei nessa. Mas não é um trabalho fácil, tu sabes bem. Assim como em outros momentos, fui salvo por um acaso feliz. (Que eu atraí? Talvez…) Ocorreu algo curioso, em que nem mesmo eu acredito ainda agora. Minha avó, meu amigo!
— Que tem ela? Conta, conta!
— Minha avó pediu, com o jeito ríspido dela de tentar ser amorosa, pediu que eu me sentasse para conversar. Não tinha acreditado quando eu lhe disse que eu estava bem. “How are you, really?”. Ela disse que me sentia distante, que não sabia o que fazer, que sentia que não havia muita comunicação entre nós. E que ela desejava isso. Eu era o motivo, parte do motivo, de ela ter viajado meio mundo para cá e ela fez isso porque me ama, e me quer conhecer e me quer presente. Coisas bonitas disse ela, embora sempre com aquele jeito sem jeito dela, em que os desejos soam como imperativos. Mas algo havia de muito real no que ela dizia e eu fui capaz de respeitar isso. Eu, que passei o dia me desrespeitando e me desonrando, senti vontade de honrar a minha avó naquele momento, ainda que ela me irritasse e ainda que ela tivesse me feito mal. De fato, vó, tenho me comunicado pouco. É difícil, você sabe como é. Expliquei-lhe do meu período de depressão, expliquei da ansiedade que sinto, de como é difícil ir até a cozinha quando ela está lá, que não me sinto tão livre para cozinhar o que eu quiser, que sinto ansiedade ao falar com ela. Conversamos sobre a língua norueguesa, o maior espinho da nossa relação; ela me compartilhou memórias valiosíssimas da minha infância, de uma vez que eu a trouxe para um chá de avós na creche, e pedi-lhe que não falasse nada e pedi às outras avós que não lhe dessem ouvido, porque ela não falava português. Condenei-a ao mesmo vexame a que ela sempre me condenava, toda vez que falava norueguês comigo e toda vez que desejava que eu falasse norueguês. Falamos de como minha mãe também gostava de falar norueguês e de como, com meus avós presentes, ela insistia na língua-mãe dela… E eu ficava sozinho. Sozinho no meu espaço lingüístico, soterrado de vergonha e de incompreensão por todos os lados, abandonado inclusive pela minha mãe, que não mais traduzia as coisas para mim, mas esperava que eu soubesse o que ela dizia, em norueguês, e respondesse também em norueguês. Mas eu não sabia! Eu não sabia, porra. Eu ainda não sei. Enfim, minha avó iniciou uma conversa dessas. Uma busca sincera por honestidade, abertura e contato. Nunca esperei isso dela e fiquei sinceramente tocado. Dei-lhe um abraço ao final da conversa, não por obrigação, mas por desejo e por amor. Por detrás de todos esses conflitos e dificuldades, afinal eu disse, está uma dificuldade de se sentir amado. E ali eu me senti amado e por isso essa conversa serviu como desarme de todo o corpo deprimido que se tinha instalado em mim. Nessa conversa contei também sobre minha melhor amiga, que se encontra deprimida e que não tem querido falar comigo, e isso tenho certeza de que me afeta muito também. Conversamos sobre minha mãe e sobre a dificuldade dela de comunicação e sobre como minha avó sentia que também ela ela tinha perdido. Consegui ser empático em relação à minha avó com a minha mãe. Minha avó! que tanto machucou minha mãe e que tão responsável por suas neuroses é. E nem foi difícil. Foi… maravilhoso, na verdade. Não sei se foi o vinho, mas acho que não. Acho que minha avó é cascuda mesmo. Ela aguenta porrada. Nós é que temos o dever de criarmos força em nós mesmos para dar porrada nela; isto é, para ser sincero com ela. Minha mãe, talvez, tenha que conseguir lhes dizer que não devem ficar aqui em casa por tanto tempo, que fiquem num hotel por exemplo. Mas a verdade é que a maior parte do desconforto dela, penso eu, vem da dificuldade de comunicação mesmo. E que, resolvendo-se isso, todas as outras questões se amenizariam. E eu senti esperança de que minha mãe e minha avó possam se dar bem, ter conversas sinceras, chorar, se impactar. Viver, enfim. Que não é “tarde demais”, que as neuroses não são insuperáveis, que ainda há auroras por vir. E senti que eu deveria honrar essa conversa da minha avó, a começar por cuidar de mim hoje e por desfazer esse corpo deprimido. E amanhã, se eu conseguir, vou estar mais presente para eles, vou me defender e entrar na cozinha mesmo quando eles estiverem lá, vou falar com eles o que penso e o que sinto, e vou amá-los. Se eu conseguir. Se eu não conseguir, paciência. Mas eu vou tentar. Porque aprende-se a amar amando, não é mesmo? E se eu puder me permitir ser amado por uma avó, cheia de problemas é verdade, mas uma avó que consegue aos 70 anos me convidar pra uma conversa sincera dessas, nossa, não tem nada de vergonha nem triste nem neurótico nem banal aí. É um orgulho e uma felicidade ser amado por uma avó assim. E ser amado por alguém como eu, que consigo reconhecer isso e honrar isso, será também um orgulho e uma felicidade. Porque nós somos mais potentes do que cremos; basta nos amarmos para ver.
— Não tem jeito, né, você sempre assume o seu estilo de sábio quando se empolga… Não consegue deixar as banalidades como são, né? Sempre as desbanaliza, sempre as torna grandiosas…
— Ah, não, que também de você eu quero me defender. E vou citar Rilke, diretamente e com aspas, pra mostrar que não preciso esconder minhas referências e meus consolos. Nem fingir que sou eu que escrevo quando não é:
“Nós, seres do aqui e agora, não estamos satisfeitos por um só momento no mundo do tempo, nem presos a ele; nós sempre vamos além e além, até os de outrora, até nossa origem e àqueles que parecem vir depois de nós. Nesse mundo “aberto” ao máximo, não se pode dizer que todos são “contemporâneos”, pois justo a revogação do tempo acarreta que todos são. A transitoriedade cai em toda parte num profundo ser. E, assim, todas as formas do aqui não devem ser usadas apenas dentro de limites temporais, mas, tanto quanto possível, devem ser postas naqueles significados superiores de que participamos. Mas não no sentido cristão (do que me distancio com fervor cada vez maior); ao contrário, numa consciência puramente terrena, profundamente terrena, jubilosamente terrena, é nossa tarefa introduzir o visto e tocado aqui no círculo mais vasto, o mais vasto de todos. Não em um além, cuja sombra escurece a Terra, mas em um todo, no Todo. A natureza e as coisas de nosso entorno e uso são preliminares e transitórias, mas são, enquanto estamos aqui, nossa posse e nossa amizade, cúmplices de nosso sofrimento e alegria, tal como elas já foram os confidentes de nossos antepassados. É essencial, portanto, não apenas não caluniar e rebaixar as coisas do aqui, mas também, pelo caráter provisório que elas compartilham conosco, compreender e transformar esses fenômenos e coisas com o mais íntimo entendimento. Transformar? Sim, pois é nossa tarefa gravar em nós essa terra provisória, efêmera, de forma tão profunda, tão sofrida e tão apaixonada que sua essência de novo se ressuscita “invisível” dentro de nós. Somos as abelhas do invisível. Apaixonados colhemos o mel do visível, para acumulá-lo no grande favo de ouro do Invisível.”
— Lindo, meu caro. Agora vai lá e arrasa.