Youfulness.
7 de dezembro de 2017
5 de dezembro de 2017
Tirar sangue de pedra
Repara: da pedra nada sai. São sempre os teus dedos que sangram. É ti quem sangra. Perguntas-me "como viver com o coração destroçado?". Ora, a vida e o destroçamento são uma e mesma coisa. Teu erro está em, por clichê que pareça, separar teu coração da vida, como se ela fosse objeto dele. Não: a vida é o que pulsa, a vida é o pulsar.
Os deprimidos e todos os tristes — e neste mundo nós somos maioria — têm diante de si o desafio de respirar com o peito frio; amar com a alma cristalizada (isto é: frágil e dura); sustentar de pé um corpo mumificado, que deseja a imobilidade como o leproso deseja a solidão; nosso coração foi tornado pedra! — e dele a vida nos exige tirar sangue. Insana crueldade.
Mas o foco, meus amigos, não é o sangue, muito menos a pedra. É o tirar. Não me importo que exageres, que sofras, que grites. Esperneia o quanto precisares. Marcha feito imbecil à flama do apocalipse, entrega-te à besta do Tédio, te fode. Do outro lado encontrarás um espelho — — e, enquanto houver reflexão, há luz.
Para tirar sangue de pedra, basta apertá-la com toda a tua força. Deseja ardentemente, até não aguentar (essa parte é fundamental), e então desiste — tão ardentemente quanto. Os violonistas só tiram sons das cordas porque calejaram suficientemente os dedos. De nosso intensamento virá o suco da nossa vida.
1 de dezembro de 2017
Morrer
Do choro nascem duas coisas: a poesia e a saúde. Nossos olhos molhados primeiro turvam, mas em seguida, se sobrevivermos, purificam. Nosso sal dá gosto ao que antes era impalatável. Nossa morte é sempre adubo. De nós mesmos não somos a planta — somos o solo. Deixemos nossas folhas cair. Pereçamos. Ajoelhemo-nos, choremos, caiamos.
Se sobrevivermos, voltamos mais fortes. Se morrermos, os outros herdarão nossa força. Permanecer vivos na fraqueza e na secura — essa é nossa única proibição.
Meu sangue é o teu sangue. Somos todos seiva do mundo.
Contra a piedade
Nossa tarefa enquanto filósofos é dizer as coisas mais terríveis que já se ouviu na Terra — — sem com isso destruir.
Essas coisas terríveis, nós as chamamos de verdades.
E talvez fosse mais exato dizer que destruímos sim: destruímos os alicerces da mentira, da fragilidade e da imobilidade.
Heráclito não descreveu o mundo quando disse que era feito de fogo. Era um apelo, para nós, sempre para nós: fogo. Sejamos fogo!
20 de novembro de 2017
Dialogo de meia idade à beira da cama
Com o olhar de quem conheceu intimamente a solidão. Assim foi que nos cruzamos, ainda que não soubéssemos na época. Desejávamos, ah como desejamos, companhia para nossa alma tão torturada, tão calejada — de quê? Mal o sabíamos nós, mas queríamos que nos advinhassem. A felicidade que juntos sentimos quase destruiu tudo, porque a nossa alma, afinal, se assentava sobre a tristeza. Quando foi que optamos pela alegria? Quando foi que desistimos de fazer silêncio? Quando foi que paramos de condenar os nossos encostos e passamos a tratá-los como vivos, como iguais? Quando foi que nos consideramos vivos? Quando foi que paramos de nos vingar e assumimos a responsabilidade pelo nosso destino, por nossa felicidade? Quando foi que abdicamos da culpa e da vergonha e, sim, mesmo da raiva, para ir além? De onde veio esse ímpeto, meu amor? Por que parecemos tão pouco numerosos? Já sabemos que não somos tão raros quanto julgávamos na adolescência. Já nos descobrimos banais. E, no entanto, tu pareces tão rara. Teríamos conseguido arrancar das fadas da nossa puberdade sofrida as asas de fogo com as quais sonhávamos em ascender? Terá nossa imaginação tão fértil cavado um furo na realidade, teremos tocado o fio do nosso porvir? Como — não era tudo vã juventude? Estaremos nós senis?
Não sei, meu bem. Acho que estamos apenas cansados.
16 de novembro de 2017
Rezar pelo aprendizado
Pai nosso que moras em mim,
Expande-me o peito para que eu possa receber,
Ainda quanto pareçam um punhal,
As palavras que me dilaceram a alma.
Que meu coração cresça com cada vão insulto
Como se das rachaduras viesse a nascer
Uma flor.
Que a humildade ilumine minha força
Tanto quanto o véu ilumina a Justiça.
Que com isso eu não me embote nem me iniba,
Mas tão-somente tempere com fractais de consciência
Meus atos insuficientemente ponderados.
Que a gentileza, comigo e com os outros,
Tenha por substância o fio do meu intelecto
Com o qual eu corto, rumo às profundezas de nós mesmos,
Os arbustos que obscurecem a nossa visão.
E que o que antes era intenso e cortante
Se sinta agora
Como torniquete em volta do espírito,
Suavemente a comprimi-lo
Para que ele não se desfaleça
Diante da dor.
12 de novembro de 2017
7 de novembro de 2017
Gracioso para fora
18 de outubro de 2017
Música como alongamento da alma
17 de setembro de 2017
De feitiços e feiticeiros
16 de setembro de 2017
Mais um bobo preconceito de filósofo
O que é exótico chicoteia o pensamento, obrigando-o a agir. Refletimos com mais liberdade — e portanto mais dificuldade — sobre os nossos hábitos mais arraigados. Ser um estranho em nossa própria terra: isso devemos cultivar. Filosofar é falar a língua-mãe com sotaque estrangeiro.
17 de julho de 2017
O Valete e a Cortesã
Existem dois antídotos para a inquietude e nenhum deles é o amor. Dela nos livramos quando rimos de desprezo ou quando choramos de emoção. Então, se o amanhã te amedronta, vai e te acha um idiota do qual rir; percebe toda a leveza e desinteligência de que o mundo é feito, ri de todos os acasos e de todas as incompetências que te trouxeram até aqui: descansa sabendo que o futuro é acima de tudo bobo. O segundo antídoto requer em nós a grandiloqüência cavernosa da alma: nosso choro deverá ser o eco do das deusas que perderam o filho. Inconsoláveis, desesperançosos, muito além da vida e de todo bem e mal devemos despejar nossas lágrimas. Os poetas têm a fama de tristes porque entre eles é mais comum esse segundo tipo de cura, a cura através da tragédia. Careciam de enormes consolos, esses espíritos afiados: suas palavras são o presente de um convalescente — presente que herdamos. Em sua homenagem, engrandecemo-nos e, benzidos da maternalidade cósmica, renascemos de olhos ainda mais abertos.
11 de julho de 2017
Dignidade salgada
Viram-me chorar e chamaram-me de fraco. Maus compreendedores. Do meu choro vem a minha força. Dele eu não abro mão.
Músculo lacrimejoso
As janelas da alma choram. A musculação do coração é o espasmo. De medo e dor a carne incha. Poesia nenhuma desfaz a necrose da alegria. Nenhum carinho acolhe as ruínas que somos. Afogou-se em mar de pálpebra.
Calvinistas entre os hebreus
Nada machuca mais o cansado do que o pouco caso de seu esforço. Os maiores anti-racistas são aqueles que odeiam a naturalização das próprias conquistas. Querem se acreditar criadores de seus próprios eus.
O filósofo triste adverte: não escolhemos quem somos.
Ego impotente
Desejaríamos que a força fosse uma escolha.
Mas não. Não se pode escolher não ser fraco.
21 de junho de 2017
Dois-em-um
Para criar o que quer que seja, o artista precisa se duplicar. Os seres comuns vivem tão-somente no mundo da afetação, receptores passivos de tudo quanto Deus lhes dá. Os artistas não escapam desse mundo, e afinal é com o intuito de afetar que criam, mas habitam também o reino de deus, um submundo da consciência, a partir de onde pressentem (isto é: sentem sem sentir) o que virá a compor sua obra. Eles não são personagens dos seus romances, nem mesmo quando se trata de autobiografia, mas algo distinto, nublado, sélfi-distante. Esse exercício — de ser além do que se é, de colocar-se do outro lado do cavalete da existência — aproxima os artistas do divino e os imbue de algumas ferramentas sentimentais que dariam inveja a qualquer filósofo (que nada mais é do que um artista doente; todo filósofo padece de sua obra). Dentro de alguns séculos, quando tivermos finalmente afetado tudo, criaremos "terapias" para emular esse devir-deus dos artistas, sedentos que estaremos da nossa própria potência transmundana. Até lá, o mundo permanece dividido em duas classes: os criadores e os criados.
O eu e suas bestas
Quem tem alma simples não filosofa. Para conversar consigo é preciso ter, no mínimo, alma dupla.
20 de maio de 2017
18 de maio de 2017
Pensamento magro
Desconfie de toda filosofia gorda. Quem para pensar precisa de polissílabos se assemelha a quem para correr precisa de muletas. Vigorous thinking is concise. Em seu habitat natural o pensamento corre, dança, salta, escala, rola — brinca! Longe dos venenos o pensamento medra elástico e esguio, rente à vida, semeado pelo prazer. Não precisa enrijecer ali onde se pede curvatura. Mantém um tônus espontâneo, desesforçado, muito diferente dessa hipertrofia compulsiva a que aspiram nossos mui corretamente chamados “acadêmicos”. Esses livros infinitos que se lê, coletâneas, enciclopédias, listas de exercícios, comentadores, bibliografias secundárias, citações referenciais — tudo isso, quando não é asquerosa gordura, é plástica. Relembremos nosso amigo Arthur, lebre entre elefantes: “Para ter lido tanto assim, deve ter pensado muito pouco!”. Contra essa excessividade do intelecto, cultivemos uma filosofia funcional — leve, definida, ágil. Nossos músculos são mais intensos que extensos. Nosso pensamento, bem como nossa prosa, é de uma finesse calistênica.
10 de maio de 2017
4 de maio de 2017
Ser-para-si
As crianças são tão acostumadas a serem feitas de objeto que acabam crendo que sê-lo é nobre e digno. Assim, mostram à mãe o seu amor advinhando o que ela deseja — e fazendo o possível e o impossível para se transformarem nisso. Toda instituição aproveita esse funcionamento em algum grau: define o que é “desejável” e pune o que não é. As pessoas mais felizes são aquelas que melhor conseguem distorcer os próprios desejos para que se conformem aos desejos do Outro.
Não é assim que queremos amar. Não queremos amar objetos; não queremos amar quem se sujeita. Queremos sujeitos próprios. Queremos senhores de si. Alguém que deseje realizar os próprios desejos, não os desejos de outro alguém.
E para isso é preciso ter desejos próprios. Este é o antídoto contra essa neurose no amor. Ter desejos próprios! Não os projetar, portanto, nem na criança nem no namorado nem no aluno nem no amigo.
Não precisar de outros. Dispensá-los. Conseguiremos amar assim? Quanta imoralidade!
Queremos ser desrespeitados, pois somos poderosos mas não infalíveis. Queremos que desconfiem de nós, pois somos humanos e não tijolos institucionais. Queremos ser desobedecidos, pois não amamos o poder, apenas ojerizamos a fraqueza. Amemos a força do outro, a independência do outro, a rebeldia do outro, a transgressão do outro. Amemos, enfim, o outro — não a imagem que ele tem do nosso desejo.
Comecemos amando o outro — — — em nós.
1 de maio de 2017
Qualquer o rio que sejamos, seremos mar.
Nosso amor era de uma cronologia epistolar. Não se pode apressar o sentimento como não se pode apressar as cartas. Vêm e vão no seu próprio tempo, indiferentes às nossas ânsias e pressas. Como um rio recém-nascido: à medida que corre vai abrindo as margens que imediatamente passam a lhe dar forma. Assim é o nosso amor em relação a nós mesmos: antecede-nos e, uma vez nascido, jorra com força criando nossas margens. Não se pode apressar um rio nem à força fazê-lo nascer. Nossa tarefa é aprender a amar o nosso destino, que é ser mar. Sem pressa e disposto a tudo receber.
Coração de fênix
29 de abril de 2017
Por um Yin Yang ocidental
Não pode ser forte quem não sentiu intensamente a fraqueza. Os mestres dizem 'encontra tua força', mas isso só pode ser feito na fraqueza. O mesmo se passa com quem deseja 'encontrar a si mesmo': precisa ter se perdido primeiro, precisa estar perdido. Os desertos escondem mais tesouros do que os pastos verdes. É no deserto que as pessoas se fazem. É no frio que o fogo arde com mais vigor. É na solidão que encontramos a nossa própria companhia. Nós nos tornaremos amor quando ele nos escapar. Desejo o seguinte aprendizado para o futuro: que se invoque a solidão antes de ela se fazer presente. Que as rédeas sobre ela tenha-as tu, pois bicho nenhum é mais selvagem do que a solidão inesperada. Não a temas; ela fareja o medo e o retribui com as mordidas mais profundas que a tua alma jamais sentiu. Mestre é aquele que fez da solidão uma amiga leal. Respeitemo-la. Amemo-la.
18 de abril de 2017
Na crise
Nada mina tanto o potencial da humanidade quanto a perspectiva de conforto no futuro.
6 de abril de 2017
Consolo de si para si
Quando sentir vontade de desistir, desista o mais rápido possível. Que venha — e vá — a dor, a culpa, o choro, o medo. Nos nossos tempos, a força está com aqueles que reconhecem em si as fraquezas. Sem as bajular, mas sem as desmerecer. Mora um suicida em nós. Estendamo-lhe a mão, convidemo-lo para um chá. Paradoxalmente, ele irá embora quando o deixarmos entrar. Aos poucos, por debaixo dos panos, a nossa força se cultiva e de surpresa ela nos arrancará de nós mesmos — coisas incríveis faremos quando menos esperarmos. E é sempre assim. Em silêncio nos tornamos quem somos: o grito e o choro do parto são senão a coroação de um longuíssimo processo intra-uterino. E é de surpresa que nascemos. A queda não é falta de força. O crescimento obedece ao movimento de pulsão (encolhem e expandem). Os músculos se desenvolvem no descanso. A flexibilidade vem do relaxamento. O não precede o sim. O amor — — virá.
Os mestres que queremos ser
Nós, que fomos criados sem pai, sofremos duplamente quando tentamos nos superar. Falta-nos a profundeza do amor de um mestre que não nos poupa; de forma que, ao se nos exigir força e enfrentamento, sentimos apenas a dor e interpretamos as ordens como raivosa vingança — pois só isto conhecemos em nosso coração. Precisamos parar de nos vingar de nossos pais, abandoná-los por completo. O pai amoroso de que carecemos, nós mesmos o seremos; e para isso precisaremos receber nossas fraquezas, vícios e defeitos com braços abertos. Mais profundamente do que nos amaram precisaremos nos amar. Acima e abaixo de toda ordem deveremos nos impor com peito aberto e criar amor ali onde não o há. As crianças medrosas que éramos seremos de novo e de novo, mas não para sempre: pois de cada choro retornamos convalescidos e fortes, cada vez mais paternais conosco, cada vez mais carinhosos e firmes — cada vez mais impetuosos e exigentes. O nosso coração nos exige a força. E, uma vez que abdiquemos de a receber do berço, de nosso Pai, uma vez que nos aceitemos órfãos de Deus — aí sim poderemos começar nossa ascensão. Matamos nossos pais para que pudéssemos parir a nós mesmos. Tornamo-nos ateus como quem se torna criminoso. E perdoados — por nós mesmos! — renascemos. Amai. Amém.
3 de abril de 2017
2 de abril de 2017
28 de março de 2017
O que aterra a alma
Pergunte ao cansaço:
— O que se esconde por baixo de ti?
E tome cuidado com a resposta.
23 de março de 2017
Mais páthos, menos passione
De quantas coisas padecemos porque não nos deixamos por elas afetar? Quanto do que hoje é veneno não seria bálsamo se corretamente digerido — em pequenas quantidades e antes do prazo da validade —? Quem se faz de dispensa de sentimentos, quem os tranca sem contato com o sol do corpo, quem não tem no seu arsenal bons temperos para lhes conservar a qualidade; — ora! impressiona mesmo que homem assim se torne paraíso para todos os ratos da alma? Que o seu interior se torne uma cultura de vermes e fungos? Falta-lhe o básico de uma higiene espiritual!, vive ele como um moderno sem geladeira, deixando estragar tudo aquilo que lhe deveria servir de alimento, incapaz que é de calcular de quanta comida precisará hoje. Nesses casos, em que se tem o interior todo estragado, a abstinência ascética se justifica: quanto menos contato com a podridão aí, melhor. Mas o consumo não precisa apodrecer: recuperemos com os sábios a arte de comer e a de não comer, a de digerir e a de jogar fora, a de sentir! sem adoecer.
20 de março de 2017
Enfim, a convalescença!
Dar-se colo
Não desviar o olhar de si: acostumar-se com o frio interior. Sem se confortar, mas sem se lamentar. Chorar se necessário, mas com moderação. Recusar a comida e qualquer prazer fácil (jejuar). Cuidar de si. Só chamar o outro caso seja possível a sinceridade. Se não, aguentar (esperar). Ninar-se. Esquentar-se. Sozinho, sozinho. Desistir de ganhar da dor. Aceitar-se. Chegar mais rápido ao "fundo do poço", para que a única opção seja subir. Lembrar-se do fundo do poço, com força. Pensar na subida, pensar na montanha. Subir. Amar-se. Amar.
18 de março de 2017
Metáforas de sensibilidade e criação
O maior erro que os homens cometem ao chegar à adultice é o de considerarem-se acabados. De uma hora para outra, devido a uma mistura de cansaço e arrogância, eles param de considerar o mundo um lugar de novidades e encerram as coisas da vida em si mesmas, dando-lhes um caráter estático e compreensível. Como se fossem um arquivo somente-leitura nos computadores de Deus, já escrito e para sempre imodificável. Esquecem que os deuses somos nós e que acima de tudo o arquivo de nossas vidas encontra-se aberto à nossa frente aguardando o nosso input, sensível a tudo o que lhe fazemos. Mais: o software em que rodamos é completamente open source, apenas esperando o nosso código — nós, eternos programadores! Hackeável é o mundo nas nossas mãos e com o código da vida devemos brincar, sempre adicionando umas linhas aqui e ali, sempre tentando descobrir novas capacidades, novas eficiências, novos sentimentos, novas aventuras. Programas morrem quando paramos de desenvolvê-los: não nos transformemos em abandonware.
16 de março de 2017
Uma semana de Śramaṇa
Saudade de ser amado
O amor não se pede, apenas se dá. Os bebês pedem amor, é verdade, mas chorar pedindo amor seria para nós, adultos, uma humilhação, pois sentimos no nosso íntimo que todo pedido carrega consigo um pouco de violência, e ser amado apenas porque se pediu nos pareceria como forçar o outro a nos amar — e isso não queremos. Queremos ser amados pelo que nós somos e como que espontaneamente, sem que precisemos pedir. Mas carecemos de amor e o desejamos.
A solução histérica é continuar pedindo amor e recebê-lo em gotas insignificantes, e pedi-lo cada vez mais até que venha a frustração por não ser (e nunca é) o suficiente.
A solução deprimida é aceitar a derrota e parar de pedi-lo, para, uma vez acostumado com não o ter, acreditar que nunca o terá nem nunca o teria, até uma hora definhar.
A solução obssessivo-compulsiva é tentar encontrar em si algo de errado para nutrir a esperança de que, uma vez aquilo consertado, o amor virá — até que o cansaço vença esse ineganhável jogo de gato-e-rato.
A solução fálico-narcisista é tomá-lo à força, pois ele já se acredita (e tem que se acreditar) amável e amado, de forma que exigir o amor não é senão fazer valer um direito natural, como quem pede o troco merecido. Termina, efetivado ou não o estupro, em desilusão e impotência.
Como se sabe, nenhuma dessas soluções soluciona coisa alguma. Qual deverá ser o nosso caminho se quisermos amar e ser amados de forma saudável? Uma coisa eu sei: se amor é algo que apenas se dá, é preciso então que sejamos capazes de nós mesmos dar amor — tornarmo-nos fontes do amor de que carecemos. Talvez algo como uma solução narcisista-vaginal: narcisista, porque o movimento vai de si em direção a si mesmo; vaginal, porque se foca no recebimento, não na tomada. Talvez devamos ser um pouco histéricos e pedir amor, sim: mas pedi-lo a nós mesmos. O Deus que tudo aceita e tudo ama, essa grande e resistente ilusão da humanidade (uma criação compulsiva, diga-se), nós mesmos devemos sê-lo — com o cuidado, para o qual já alertei antes, de sermos um pouco mais responsáveis que Ele. Não queremos, afinal, amar todas as partes de nós mesmos igualmente, pois nos reservamos a capacidade e o direito de julgar e escolher. Sentir-se preenchido de amor, sem o segurar nem conter. Desistir de controlá-lo. Permitir que transborde. Que flua.
Seja lá qual for o caminho, não será fácil. Desejo a todos, a mim principalmente, paciência e coragem. Que não nos falte aquele olhar gentil, de que só nós somos capazes.
No frio, somos nós que produzimos o próprio calor. Venceremos o inverno. Durma bem, querido.
9 de março de 2017
O oposto de corpo traído
Em muitos sentidos, é preciso de mais coragem para falar das coisas banais da vida do que das grandiosas. Nas grandiosas, fala-se a língua do vento, pode-se ser sutil, tocar quem não se pretendia tocar, de modos que não se imaginava tocar. Dá-se liberdade às palavras de fazerem o que elas fazem: mover os outros, à sua maneira. Usamos metáforas e metonímias e cem mil jogos de linguagem podemos usar para tornar mais sutil ou mais vago o que dizemos, de forma que se torne mais universal e possa ter um alcance maior de leitores e de espíritos. É isso o que os escritores fazem, e não há mal algum nisso.
Mas para contar de um dia banal, para ser sincero em relação ao que há de escuro e entediante e simplório e pequeno na nossa alma, aí é preciso, também, usar de palavras escuras e entediantes e simplórias e pequenas. Para o escritor, bicho orgulhoso que é, isso é assustador. Suas palavras grandiosas são seu escudo e usar palavras simples é para ele como tirar as roupas. Vulnerável fica, envergonhado, perde a graça do movimento, age como criança terrivelmente embaraçada no vestuário errado. Tudo parece pecado e cada passo parece ser vigiado e a qualquer momento pressente-se uma punição — de onde? não se sabe. Mas essa consciência aguda demais do tempo presente, esse não-conseguir-sair-da-própria-vergonha é a pior prisão. Por isso devemos admirar os escritores que escrevem simples. Não que a simplicidade seja a virtude máxima, nem a única, mas devemos admirar aqueles que se dão à coragem de escrever sobre as coisas simples, nus a enfrentar a vergonha.
— E o que se te passou hoje de tão banal e escuro que precisas de dois parágrafos inteiros apenas para prefaciá-lo? — pergunta o veterano com olhos gentis, mas ainda um pouco perdidos.
— Hoje eu retomei uma escuridão de tempos passados, que deveriam estar remotos. Sim, eu sei, eu sei, eu sei que essas coisas não simplesmente passam e que todos os tempos estão sempre vivos ao mesmo tempo, eu também fiz as mesmas lições que você, não é desses consolos simples que preciso nesse momento. Preciso contar a minha banalidade, diretamente e sem rodeios, sem buscar nela uma lição, sem tentar fazer desse momento uma aprendizagem ou trampolim.
— Pois bem. Continua, então.
— Nada é novo, como disse, tudo é repetição, tudo era conhecido. Desde sábado passado, quando voltei do Pilates, lembra-te de que eu tive um mau dia e como que me deitei no banho morno das minhas compulsões, retornando em parte aos meus tempos de deprimido?
— Sim, claro. Disseste que se sentia sem energia nem motivação, que nada tinhas vontade de fazer senão talvez de jogar um videogame compulsivo, desses em que se pode ver os números aumentando, e comer, é claro: falaste bastante sobre como comeste compulsivamente, devorando tudo que encontravas, comias sem respeitar o apetite e sem se dar tempo para sentir o gosto das coisas. Foi nessa noite, creio, que tu pegaste um pedaço enorme de queijo, desses que dariam para umas 30 torradas, e comeste-o, de pedaço em pedaço, como quem come a uma maçã. Não é de espantar essas espinhas em teu rosto…
— Sim, minhas espinhas. Bom você ter falado nelas, porque creio serem importantes. Como tenho comido muito mal, era natural de se esperar que voltassem assim. Não imaginei, no entanto, que seriam tantas e tão feias. Senti-me adolescente de novo, e tu sabes quais sentimentos tenho em relação à minha adolescência.
— Sei que te sentias feio, inadequado e pouco vivido. Desinteressante, arrogante e frio. Um verdadeiro contraste com o que diziam tuas cartas e as de teus professores…
— Quem eu era de fato não importa agora. Importa como eu me via, a imagem que tinha de mim mesmo. E essa era a pior de todas. Sentia-me extremamente feio, e ao mesmo tempo não podia admitir a mim mesmo que sentia isso, porque eu condenava de antemão todo julgamento que visava à beleza. Aprendi que a beleza era errado e, de certa forma, cheguei inclusive a me orgulhar de ser feio, porque era um pecado a menos que eu tinha. Uma grande violência contra mim isso, pois a verdade, que descobri depois nas letras, era que eu gostava sim da beleza, e muito.
— Sim, e que se nota nos teus belos t—
— Não me bajules! — interrompi. — Eu me sentia feio e inadequado e não apenas “pouco vivido”: eu sentia que nunca iria viver plenamente. Eu desistira. A vida se tornara vazio em que vez ou outra se mergulhava em busca de algum prazer que desse sustento ao dia, à semana. Mas esperança real, fé em si mesmo e no amanhã? Nada disso havia.
— Havia sim, quando lias um texto bonito. Ou quando um filme te tocava a alma.
— Sim… tens razão. Mas os meus dias banais, é deles que estou falando, os meus dias banais passavam-se vazios, escuros. Procurei preencher alguns deles com leituras, com encontros vãos, e tive algum sucesso. Pensei algumas coisas, desenvolvi a alma e o pensamento, tornei-me internamente mais potente (até certa medida), mas meu cotidiano ainda era sombrio. Como se eu passasse os dias inteiros como que dormindo, vivendo num discreto piloto automático, sem assumir responsabilidade pela minha vida, sem ser com nenhuma intensidade.
— Como aquele filme do Adam Sandler, né?
—…
— Qual é? Não estamos aqui nos abrindo à vergonha e à banalidade? Pondo abaixo nossos escudos, permitindo-nos o vergonhoso, o vil, o baixo?
— Sim, mais uma vez tens razão. Como aquele filme do Adam Sandler, sim, que muito me fez chorar. Apenas a arte me chacoalhava desse estado de automatismo. Apenas a arte e as boas conversas com amigos (que eram raras).
— Mas voltemos a falar de tuas espinhas. Disseste que eram importantes.
— Importantes de forma banal, sim, mas importantes. É que essa sensação que eu carregava na adolescência — de não ser bonito, de não ser adequado, de não saber viver, de não ter futuro, de não ter esperança — ela não foi criada na adolescência. É ainda mais antiga. Na adolescência foram as espinhas, as faltas de relacionamento, a falta de jeito nas danças, o desconforto com o álcool, esses eram só os elementos à disposição para que viessem à luz conflitos bem mais anteriores: de que eu não me sentia amável, de que me sentia covarde, de que eu não merecia a felicidade. Em particular, também, foi na adolescência que essas questões foram mais explicitamente sexualizadas: eu não merecia o toque de uma mulher, eu não tinha a coragem de me relacionar com uma mulher, eu não merecia a felicidade no amor.
— Não exageras um pouco, ao fazer essa exegese toda da tua adolescência?
— Sim, talvez, mas não me incomodo. Vou chegar a algum lugar.
— Prossegue, então.
— Acontece que eu contribui ativamente para que meu destino fosse esse mesmo que eu profetizava. Ficar horas e horas na frente do computador não era um jeito de me tornar mais bonito nem mais corajoso, afinal, né? Somente mais tarde dei-me o trabalho de investir na única coisa que me aproximava de mim mesmo: a arte. E a verdade é que cheguei a viver um relacionamento sim; algumas coragens eu tive, a muito custo, a muito sofrimento. Abrir-se para o amor não é fácil.
— E, se me permites a colocação, tu não apenas te abriste… Mas te escancaraste mesmo, com violência vulcânica. Foi bem incrível de se ver, meu caro.
— Esqueço que você estava lá para ver. Agradeço os elogios. Deixa eu continuar. Assim como na minha adolescência e assim como no meu período recente de depressão, hoje eu também contribui ativamente para que eu permanecesse na penumbra. Claro que até certa medida nós somos escravos dos nossos sentimentos, mas eu já não estou tão deprimido como antes… Já posso tomar algumas decisões em nome de mim mesmo, ser comigo um pouco autoritário. Por que, então, eu tive tanto medo? Por que senti tanto medo de viver, de me amar, de me proteger? Por que preferi me desgastar, me sombrear, me afundar, me perder?
— Não tinhas ainda mencionado o medo. De onde veio?
— Tenho certeza de que era medo, por causa da noite anterior. Eu recebera uma mensagem que eu sabia ser linda, sabia ser elogiosa, sabia vir do meu amor e falar sobre algo que eu lhe tinha escrito, e sabia que era feliz e amorosa. E o meu impulso foi o de não abrir a mensagem, guardar o celular e deitar, para adormecer o mais rápido possível. Para que aquilo não fosse uma realidade com a qual eu tivesse de lidar.
— Então não são só as realidades ruins de que foges?
— Aparentemente não! Quantas noites não desejei ter exatamente isso, meu amigo? Ser reconhecido pela minha escrita, recompensado pela minha sensibilidade, ser visto na minha beleza? Ser acompanhado de um amor, ser amado? Tudo isso eu tive e meu impulso foi — — de virar pro lado e dormir?!! Felizmente eu não anui e fui, sim, ler a mensagem, que logo virou doce conversa. Talvez não tão presente quanto fosse possível, mas doce e agradável certamente. Ao dormir, eu podia dizer a mim mesmo que era amado. Mas repara: era preciso que eu dissesse isso, porque sentir eu não sentia. Não lembro se sonhei, mas acho possível que eu tenha tido pesadelos. Como se meu corpo se revoltasse contra o amor que eu recebia! “Não mereço”, ele grita. “Não pode ser real”. Tem de haver algum bug.
— E então, de dia, comer compulsivamente, dormir compulsivamente, jogar videogames compulsivamente… crês que foram maneiras de confirmar essa tese sombria? De provar que, de fato, tu não mereces amor assim, e que ele não pode portanto ser real?
— Sim, meu amigo, é isso o que acho. Uma verdadeira sabotagem de mim mesmo, eu trabalhando (e nem tão inconscientemente assim) contra mim mesmo. Porque eu sou mais confortável na posição de desamado, de desmerecedor. Essa posição de ser amado exige muita responsabilidade, muito corpo, muita vida. E eu não tenho! Não vou aguentar. Como não aguento cinco minutos de sexo com ela, não vou aguentar ser amado por dias e eternidades e poemas. Lindo foi o texto que ela me escreveu, todos eles, mas eu não aguento lê-los porque não aguento a sensação de ser amado! Me sinto uma farsa, incapaz, inadequado, feio, um estorvo para o mundo, para ela, tudo seria melhor se nada disso existisse, se tudo se explodisse, se minha vida acabasse aqui. Ou, em termos mais realistas: se eu comesse, não uma nem duas nem três, mas quatro salsichas, regadas a ketchup. E depois comesse 3 ou 4 paçocas (quantas foram?). E depois assistisse personas sem graça na internet jogando um jogo objetivamente mal feito. E depois me masturbasse cheio de auto-desprezo, usando imagens de pessoas que eu não poderia conhecer senão por meio de um contrato sujo e problemático. E depois dormisse, não por leve torpor seguido ao orgasmo (que não houve, pois masturbação assim não dá prazer: meramente alivia), mas por tédio, tédio e falta de vontade de viver.
— Interessante essa sua fala, pois que começou falando de amor e sexo e terminou falando de compulsões diárias. Achas mesmo que estão tão intimamente relacionados assim?
— Sim, acho sim. Acho que a abertura ao amor, inclusive ao amor próprio, é condição para aquele perene sentimento de saúde, aquele gostoso sentimento de ser a si mesmo, de ser o próprio corpo, de ter sensações e de poder sentir o ambiente. Na falta dessa abertura para o amor, todas as outras saúdes desandam, pois que o amor é a base sobre a qual todas as outras se edificam.
— Amor não seria algo demasiado abstrato para que servisse de base para sua saúde gástrica, seu suor cutâneo, sua tensão genital? Essas coisas não são — —
— Muito mais corpóreas? São sim. Mas é que o amor é corpóreo. Não tem nada de abstrato nele. Amor é toque, carinho e calor. Sensações de que eu careci na primeira infância ou nas quais não pude acreditar totalmente. Que então justifiquei na adolescência. E proibi na depressão. Tudo isso volta a esse amor, basilar, antigo, infantilíssimo. E eu não consegui, como outras vezes nos últimos meses, me chacoalhar desse desamor e declarar para mim mesmo, com autoridade: “És amável, Stefan. O teu amor te ama e nela acreditas. Tu a amas também e nesse sentimento acreditas. Abre o peito para receber em ti esse carinho e calor. Ama-te”. Claro, a conversa da noite passada não atrapalhou, eu de fato lembro de que sou amado, mas não sinto. Percebe a fissão? A forma como não me identifico comigo mesmo? Um alguém assim não pode mesmo se defender, pois vai defender o quê? Se ele não se reconhece em si mesmo…
— Isso tudo parecem discussão tão antigas na tua jornada. Como se já tivesses escrito sobre elas milhares de vezes.
— Sim, é verdade. Acho que já, sim. Mas é que as coisas se repetem mesmo. E eu não sou o mesmo. E este texto aqui não é o mesmo que outrora. É importante escrevê-lo, eu sinto.
— Sim, sim. Mas, se me permites a colocação, tu não estás mais nessa posição fetal de antes, correto? Já te animas por dentro e já te amas, pelo menos um pouquinho, já tomaste coragem para escrever um texto como esse, tão explícito e banal. Algo mudou, não é mesmo? O que fizeste para sair de teu estado deprimido? Meu projeto de décadas, afinal, é o de desenvolver um bálsamo para esses estados indesejáveis da alma.
— Ah, meu amigo alquimista, eu bem conheço teu projeto. Não penses que te abandonei nessa. Mas não é um trabalho fácil, tu sabes bem. Assim como em outros momentos, fui salvo por um acaso feliz. (Que eu atraí? Talvez…) Ocorreu algo curioso, em que nem mesmo eu acredito ainda agora. Minha avó, meu amigo!
— Que tem ela? Conta, conta!
— Minha avó pediu, com o jeito ríspido dela de tentar ser amorosa, pediu que eu me sentasse para conversar. Não tinha acreditado quando eu lhe disse que eu estava bem. “How are you, really?”. Ela disse que me sentia distante, que não sabia o que fazer, que sentia que não havia muita comunicação entre nós. E que ela desejava isso. Eu era o motivo, parte do motivo, de ela ter viajado meio mundo para cá e ela fez isso porque me ama, e me quer conhecer e me quer presente. Coisas bonitas disse ela, embora sempre com aquele jeito sem jeito dela, em que os desejos soam como imperativos. Mas algo havia de muito real no que ela dizia e eu fui capaz de respeitar isso. Eu, que passei o dia me desrespeitando e me desonrando, senti vontade de honrar a minha avó naquele momento, ainda que ela me irritasse e ainda que ela tivesse me feito mal. De fato, vó, tenho me comunicado pouco. É difícil, você sabe como é. Expliquei-lhe do meu período de depressão, expliquei da ansiedade que sinto, de como é difícil ir até a cozinha quando ela está lá, que não me sinto tão livre para cozinhar o que eu quiser, que sinto ansiedade ao falar com ela. Conversamos sobre a língua norueguesa, o maior espinho da nossa relação; ela me compartilhou memórias valiosíssimas da minha infância, de uma vez que eu a trouxe para um chá de avós na creche, e pedi-lhe que não falasse nada e pedi às outras avós que não lhe dessem ouvido, porque ela não falava português. Condenei-a ao mesmo vexame a que ela sempre me condenava, toda vez que falava norueguês comigo e toda vez que desejava que eu falasse norueguês. Falamos de como minha mãe também gostava de falar norueguês e de como, com meus avós presentes, ela insistia na língua-mãe dela… E eu ficava sozinho. Sozinho no meu espaço lingüístico, soterrado de vergonha e de incompreensão por todos os lados, abandonado inclusive pela minha mãe, que não mais traduzia as coisas para mim, mas esperava que eu soubesse o que ela dizia, em norueguês, e respondesse também em norueguês. Mas eu não sabia! Eu não sabia, porra. Eu ainda não sei. Enfim, minha avó iniciou uma conversa dessas. Uma busca sincera por honestidade, abertura e contato. Nunca esperei isso dela e fiquei sinceramente tocado. Dei-lhe um abraço ao final da conversa, não por obrigação, mas por desejo e por amor. Por detrás de todos esses conflitos e dificuldades, afinal eu disse, está uma dificuldade de se sentir amado. E ali eu me senti amado e por isso essa conversa serviu como desarme de todo o corpo deprimido que se tinha instalado em mim. Nessa conversa contei também sobre minha melhor amiga, que se encontra deprimida e que não tem querido falar comigo, e isso tenho certeza de que me afeta muito também. Conversamos sobre minha mãe e sobre a dificuldade dela de comunicação e sobre como minha avó sentia que também ela ela tinha perdido. Consegui ser empático em relação à minha avó com a minha mãe. Minha avó! que tanto machucou minha mãe e que tão responsável por suas neuroses é. E nem foi difícil. Foi… maravilhoso, na verdade. Não sei se foi o vinho, mas acho que não. Acho que minha avó é cascuda mesmo. Ela aguenta porrada. Nós é que temos o dever de criarmos força em nós mesmos para dar porrada nela; isto é, para ser sincero com ela. Minha mãe, talvez, tenha que conseguir lhes dizer que não devem ficar aqui em casa por tanto tempo, que fiquem num hotel por exemplo. Mas a verdade é que a maior parte do desconforto dela, penso eu, vem da dificuldade de comunicação mesmo. E que, resolvendo-se isso, todas as outras questões se amenizariam. E eu senti esperança de que minha mãe e minha avó possam se dar bem, ter conversas sinceras, chorar, se impactar. Viver, enfim. Que não é “tarde demais”, que as neuroses não são insuperáveis, que ainda há auroras por vir. E senti que eu deveria honrar essa conversa da minha avó, a começar por cuidar de mim hoje e por desfazer esse corpo deprimido. E amanhã, se eu conseguir, vou estar mais presente para eles, vou me defender e entrar na cozinha mesmo quando eles estiverem lá, vou falar com eles o que penso e o que sinto, e vou amá-los. Se eu conseguir. Se eu não conseguir, paciência. Mas eu vou tentar. Porque aprende-se a amar amando, não é mesmo? E se eu puder me permitir ser amado por uma avó, cheia de problemas é verdade, mas uma avó que consegue aos 70 anos me convidar pra uma conversa sincera dessas, nossa, não tem nada de vergonha nem triste nem neurótico nem banal aí. É um orgulho e uma felicidade ser amado por uma avó assim. E ser amado por alguém como eu, que consigo reconhecer isso e honrar isso, será também um orgulho e uma felicidade. Porque nós somos mais potentes do que cremos; basta nos amarmos para ver.
— Não tem jeito, né, você sempre assume o seu estilo de sábio quando se empolga… Não consegue deixar as banalidades como são, né? Sempre as desbanaliza, sempre as torna grandiosas…
— Ah, não, que também de você eu quero me defender. E vou citar Rilke, diretamente e com aspas, pra mostrar que não preciso esconder minhas referências e meus consolos. Nem fingir que sou eu que escrevo quando não é:
“Nós, seres do aqui e agora, não estamos satisfeitos por um só momento no mundo do tempo, nem presos a ele; nós sempre vamos além e além, até os de outrora, até nossa origem e àqueles que parecem vir depois de nós. Nesse mundo “aberto” ao máximo, não se pode dizer que todos são “contemporâneos”, pois justo a revogação do tempo acarreta que todos são. A transitoriedade cai em toda parte num profundo ser. E, assim, todas as formas do aqui não devem ser usadas apenas dentro de limites temporais, mas, tanto quanto possível, devem ser postas naqueles significados superiores de que participamos. Mas não no sentido cristão (do que me distancio com fervor cada vez maior); ao contrário, numa consciência puramente terrena, profundamente terrena, jubilosamente terrena, é nossa tarefa introduzir o visto e tocado aqui no círculo mais vasto, o mais vasto de todos. Não em um além, cuja sombra escurece a Terra, mas em um todo, no Todo. A natureza e as coisas de nosso entorno e uso são preliminares e transitórias, mas são, enquanto estamos aqui, nossa posse e nossa amizade, cúmplices de nosso sofrimento e alegria, tal como elas já foram os confidentes de nossos antepassados. É essencial, portanto, não apenas não caluniar e rebaixar as coisas do aqui, mas também, pelo caráter provisório que elas compartilham conosco, compreender e transformar esses fenômenos e coisas com o mais íntimo entendimento. Transformar? Sim, pois é nossa tarefa gravar em nós essa terra provisória, efêmera, de forma tão profunda, tão sofrida e tão apaixonada que sua essência de novo se ressuscita “invisível” dentro de nós. Somos as abelhas do invisível. Apaixonados colhemos o mel do visível, para acumulá-lo no grande favo de ouro do Invisível.”
— Lindo, meu caro. Agora vai lá e arrasa.
27 de fevereiro de 2017
Rir-se!
O que torna a criança tão amável? Não é o fato de ser estúpida, como a alguns parece, mas o fato de não levar ela a sério a sua estupidez. O outro lado dessa moeda, igualmente verdadeiro, é o fato de que a sua genialidade — — ela também não leva a sério! Tão leves essas crianças, rindo-se de tudo, de tudo fazendo jogo. É provável que às vezes sequer ela saiba se está sendo estúpida ou genial, desde que ainda não tenha aprendido aquele olhar julgador que inaugura essa divisão. Riamos também nós de nossa estupidez e entreguemo-nos à leniência com nós mesmos. Escrevamos e escrevamos, e certamente escreveremos besteiras e estupidezes, mas talvez escrevamos igualmente uma genialidade ou outra. Desaprendamos, ainda que apenas por um segundo, aquele olhar julgador, bebamos nosso vinho e façamos piada. É carrnaval, meus caros, e também o pensamento precisa se travestir de seu oposto para não perder a lucidez. Ele há de voltar, meu amigo filósofo, não precisas te preocupar.
Mais um esquecimento
Quem dedica a alma por muito tempo ao pensamento com freqüência esquece aquela sensação da infância de pensar sem um centro, como manivela que não está presa a nada mas que ainda assim gira desconstrangida e leve. Como queremos mudar o mundo, ao crescermos insistimos em prender nosso pensamento a uma base, para que ao rodá-lo sintamos que nossos esforços movem algo lá fora. Epistemologias inteiras escrevemos em busca desse centro, dessa base de manivela segura o bastante para que o mundo seja com ela manejado. Ao ficarem gagás, como invariavelmente acontece, os cientistas experimentam intensa alegria, pois finalmente podem usar suas manivelas (que poliram durante toda a vida e que tão habilmente seguram) sem atá-las ao que quer que seja: tornam-se livres, como crianças, pois fazem o que amam — pensam — sem o peso de outrora e tudo, tudo parece agora girar com a manivela e são por isso corretamente chamados de loucos. A manivela que tudo gira é tão útil quanto a palavra que tudo significa (pensar é discriminar). Como é linda e como é assustadora e como é patética essa imagem do cientista gagá que se perde, cansado demais de procurar bases e centros e seguranças e métodos. Recomenda-se, para prevenir esse destino, eventuais mergulhos nessa irresponsabilidade mental, o entregar-se ao pensamento sem o lá-fora, uma espécie de meditação do intelecto. Nosso objetivo é reganharmos o contato com a alegria da infância sem no entanto perder o que aprendemos, sem nos tornarmos impotentes, sem nos tornarmos cientistas malucos. Conseguiremos.
Péssimos ontólogos
Toda educação pode ser resumida à compreensão de metáforas, pois nossa teia — isto é: nossa linguagem — é teia de metáforas. Julgue a inteligência de seus pares pela forma como compreendem ou não as analogias e os jogos de palavra e acima de tudo preserve perto de si aqueles que são habilidosos em criar boas metáforas, aqueles para quem nenhum campo é distante o suficiente que não possa ser comparado a um outro um pouco mais próximo, para quem todo bosque da cognição é florido mergulho em jardim de sensações intelectuais — e sensações intelectuais são metáforas!: a mente sentindo o que não está ali mas poderia. PODERIA: esse é o verbo metafórico por excelência. Nós, os metafóricos, abdicamos de dizer o que as coisas são para nos dedicarmos ao que elas poderiam. Do mundo todo somos artífices! Criamos, com nossas analogias e brincadeiras e versos (alguns diriam: nossas mentiras), as mais belas pontes entre as coisas.
Péssimos físicos
Ao fazer julgamentos sobre si, o homem erra o tempo todo: sempre prefere medir a distância que o separa de um zero qualquer, e tudo — o zero, o aqui e mesmo a régua — aí são erros, tudo injustificável arbítrio! Não se mede o relativo com o absoluto. De nós mesmos somos a única régua: podemos apenas nos distanciar ou aproximar de nosso cor. Lembremos sempre que ao corrermos 60km/h na Terra nossa velocidade em relação às outras galáxias não se altera sequer por um 0,001%! e o mesmo erro incorremos ao nos julgarmos: ignoramos a inércia em nós e nos medimos a partir do que de menor existe à nossa volta. Mas somos enormes! Galáxias inteiras somos nós. E galáxias — — não se julgam. Queimam.
A nossa musculação
Aquele ali é musculoso, sim!: a vida inteira trabalhou em fazer crescer o coração.
24 de fevereiro de 2017
Vita contemplativa
Diferente do corpo, a alma se fatiga quando não se mexe. Por isso a inação espiritual é tão perigosa e a preguiça mental, tão difundida. Pois, almejando “descanso”, condenamo-la ao repouso — e nada é mais tóxico para a alma do que o repouso. Não. A alma precisa de ação — sua ação. Quanto mais se agita, mais se convalesce. Bem aventurado aquele que tem diante de si tarefas da alma: pois dele é o reino do espírito e para nada lhe faltará gás. Entende agora o paradoxo dos que vivem intensamente? Não é que tenham energia para as coisas, é que das coisas ganham energia! Dancemos, meus caros! Que a nossa paralisia dormente à eternidade póstuma pertence.
20 de fevereiro de 2017
No meio do caminho
Se somos assim ou assado — felizes ou tristes, por exemplo — importa muito pouco perto do que fazemos. A felicidade só é desejável na medida em que nos permite um pouco mais de força ou arrebatamento para que realizemos o que quer que seja; em si, ela não vale quase nada. Perceber isso é mais uma dessas descobertas desencantadas na meia vida de um pensador: não oferece nem consolo nem vigor, apenas se nos põe como pedra no caminho, indiferente como todas as pedras. Mas isto devemos aprender rápido: indiferente à nossa felicidade é a natureza. E talvez nós mesmos devêssemos ser — — um pouco mais como a natureza...
14 de fevereiro de 2017
Corajosos, logo distintos
Discordar sinceramente de um amigo é a maneira mais profunda de respeitá-lo.
13 de fevereiro de 2017
Como o sol precisa da sombra
12 de fevereiro de 2017
Alma de balão
A vergonha é o medo de não caber em si mesmo. (Por isso ela nos fura: tem como objetivo nos definhar para que, esvaziados, ocupemos menos espaço)
Os nãos que preparam o sim
Entre dois encontros há um hiato insuportável, durante o qual viajamos desacompanhados por longas eternidades. Cuidemos, porém, para não nos precipitarmos em meias companhias, por receio de que o sol do outro nunca mais brilhe. Em vez disso, devemos nos agasalhar, como quem se prepara para longo inverno, e acumular solidões. Entesourar!: isso nos pede o poeta. Calmamente depositamos fé no futuro, seguros de que, tal como o verão, o grande encontro virá. Nossa solidão é a energia potencial da nossa alma: transborda tão logo encontra vale profundo o bastante onde se derramar. Até lá, nossa tarefa é engrandecer — e tanto maiores nos tornamos quanto mais solidões comportamos.
10 de fevereiro de 2017
Dar à luz em várias vozes
Na vida haverá momentos em que ficaremos nervosos e nossas mãos tremerão, incapazes de se conter em si mesmas — e nesses momentos, como em todos os outros, há que se escrever. E há os escritores que só escrevem quando nervosos. Embora admiremos essa capacidade de segurar firme a pena apesar dos tremores, temos de nos lembrar que a vida escreve em todos os momentos, não só quando urge, e se quisermos escrever nossos livros como Deus escreveu o mundo teremos que nos tornar escritores ambidestros. Pois a ânsia e o desejo e a alegria e o tremor — essas são coisas que se tem e que não se tem. Você, meu amigo, está perto de conseguir escrever com raiva e eletrizante tesão — mas, lembre-se, a calmaria é tão maternal quanto a tempestade. Nesse seu caminho, você terá que aprender a ser como mar: e isso inclui suas ondas as mais altas mas também seus momentos de laguidão onde a sua alma é o maior espelho do céu. Não será fácil e sentiremos falta de nossos tremores, agora que depois de tanto custo nos acostumamos a eles, mas mire a si mesmo nos olhos e reencontre aquela grandeza domadora de chamas que existe dentro de você: aprenda consigo próprio a paciência.
9 de fevereiro de 2017
Tornar-se estrela
Não devemos nos envergonhar de nossa história. Acima de tudo, quando nos faltarem consolos, é preciso que nos lembremos da nossa maior força: o esquecimento. O maior milagre da vida é ter feito as memórias perecíveis. Fossem hereditárias, não aguentaríamos sequer três gerações — raios!: se não dormíssemos e esquecêssemos, não aguentaríamos três dias. O mundo é novo porque esquecemos. Lembrar é reagir. Esquecer é criar. Tudo transformaremos e como crianças desenharemos os mesmos traços e amaremos de novo e de novo, como se não tivéssemos passado. E não temos. Porque na verdade não há amanhã. Eu e você somos dois nadas que, intransigentes, ousaram contentar-se. E o que torna um átomo mais ou menos carregado? O que faz com que tenha um ou três prótons, um ou dois elétrons? Quanta erótica não há na mais microscópica das físicas? Esqueçamos! Somos partículas. Nosso amor, nossa vontade, é intransigência divina: modificamos a nós mesmos, encarnamos o universo: e perecemos. Acima de tudo perecemos.
Mas, enquanto isso, amamos.
Temos alguns trilhões de anos até que todos os sóis se apaguem. O tempo urge! Muitas poesias precisam ser ainda compostas antes que a humanidade — ou o que quer a suplante — possa aprender a viver. Educá-la na beleza: essa é a nossa tarefa. Amar e esquecer: como o carvão esquece de si ao queimar. Somos velas no breu universal. Queimamos e por um breve instante vê-se algo — sombras, silhuetas, cores, detalhes, olhares inteiros se criam para as velas — até que apagamos. Não choremos nossa finitude: morremos porque queimamos. E nós: não temos vergonha de queimar. Não devemos nos envergonhar de nossa história.
4 de fevereiro de 2017
Qual era mesmo o nome? Aurora?
Dormiu então, só e com sede, porque quem sabe o dia de amanhã não traria consigo um ineditismo na alma e de repente tudo fosse novo e diferente e de repente não mais quisesse morrer e talvez viver até lhe soasse bom. Então pensou se deveria tentar buscar companhia e ajuda, mas se resolveu por se abandonar na solidão triste porque era isso mesmo que ele provavelmente merecia. E dormiu.
O horroroso
E ele escrevia e escrevia como se escrever fosse seu modo de sentir esperança, e tão desesperadamente ele escrevia, ávido de esperança, porque nele tudo estava morto, não podia passar um minuto que fosse sem escrever, pois cada minuto era desesperança eterna e dor e choro, e para não chorar precisava escrever, mas às vezes escrevia mesmo chorando, molhando as palavras conforme avançava no papel. Ninguém tinha tanto choro quanto ele, porque não havia alívio para seu choro. A escrita não era alívio, era desespero. Desesperado procurava um rastro qualquer nem de força, mas de simpatia por si mesmo que fosse, desesperado não encontrava, porque nada, nada nele poderia ser salvo, tudo nele era monstruoso e feio e ordinário e quando o poeta lhe tentava convencer da grandeza ele só chorava mais e mais, até conseguia agradecer ao poeta, porque apreciava ser por ele simpatizado e como que um pouco amado, mas acima de tudo precisava se amar e isso ele não podia, não conseguia. Por si mesmo não havia uma única gota de amor, como se fosse todo ele não uma coisa que sente, mas a coisa que bloqueia e criminaliza o sentimento. Ele portanto não se identificava com, não se sentia, si mesmo, com seu eu que sente e pensa e escreve, ele se identificava com as repressões que sentiu, os Nãos que viveu e que ouviu e que obedeceu. E é claro que se odiava porque essas repressões são odiaveis e terríveis e são jaulas cruéis a que ninguém deveria ser submetido, muito menos uma criança como ele. Mas ele era sua própria jaula e se sentia não como o enjaulado, mas como as grades. Tudo que queria era poder chorar como a fera enjaulada, sentir a própria dor de ser enjaulado, mas nem isso ele tinha. Nem a solidão de escravo ele tinha, porque nem escravo ele se sentia. Ele se sentia o carrasco de si próprio como se fosse a sua própria mão que lhe chicoteasse as costas, como se ele fosse o mais imoral dos senhores, o monstro em si, o tenebroso, a sombra, ele não tinha luz ele era o peso e o teto e nada nele merecia carinho, tudo nele era em vez disso coisa ruim, endiabrada, invejosa, má, terrível e só. Escrevia para tentar fugir de si, para tentar alcançar a sua fera interior, enjaulada, para tentar dar-lhe voz e quem sabe — quem sabe por um segundo apenas — sentir-se o dono dessa voz! Dessa voz bonita que pelas palavras ele fazia sair, dava corpo. Mas não, seria sempre um estrangeiro em relação a essa voz de fera, no máximo lhe daria corpo através das palavras, sem nunca sentir em si mesmo a sua força como sua, mas sempre alheia, sempre segunda, nunca sua, nunca sua nunca sua. Suas eram as grades, os chicotes e as punições, ele era o seu próprio carrasco e se odiava e era incapaz de se amar, completamente incapaz, restando-lhe apenas o desespero de escrever e quem sabe escrevesse algo tão bonito que a beleza arrebatasse sua alma e ele sentisse um raio de sol no rosto e por um segundo se iluminasse e se sentisse merecedor do amor de deus, do amor de si mesmo. Mas a iluminação nunca veio e deus nunca o amou, e ele permaneceu inatingível pelo próprio amor que tinha dentro de si, quer dizer dentro da fera, que não era ele, porque ele não se sentia fera e não se sentia um com a fera. Escrevia sem parar, escrevia até os pulsos doerem e as pontas dos dedos calejarem, escrevia rápido e com pressa, porque nada era mais urgente do que sentir-se a si mesmo como pessoa, como um eu, e não conseguia e a cada frase se esforçava mais, vomitando as entranhas que encontrava na expectativa de um dia quem sabe se encontrar e se sentir fera, mas não se sentia. Chorava, chorava, chorava e escrevia. Não havia ser mais lindo do que ele no universo e no entanto ele chorava, porque não merecia e porque não era capaz de se amar. E chorava, não como consolado, mas como desesperado, entregue, sem esperança e sem nada. Sem alma, já totalmente do diabo, morto, barroco, dado, feio, amaldiçoado, maldito, terrivel. Ninguém o salvaria, ninguém o salvaria. Ele morreria afogado em sua tentativa de ser quem era, mas nunca seria, sempre arriscaria de longe, sempre tentaria canalizar seu eu, mas sempre fracassaria, sempre morreria na praia, incapaz de ser mar, incapaz de qualquer força, invejoso de todo mendigo e de todo preso, porque eles pelo menos sentiam-se si mesmos e ele não conseguia se sentir nada, apenas carrasco, apenas choro desesperado e horrível de quem se sente verdadeiramente mau e indigno e impuro e quem só os fogos infernais merece porque nada nada naquela alma se salva e a fera morreria com ele, impotente e inocente, tão bonita e tão ávida de dizer as coisas que tinha pensado, mas não poderia porque ela não tinha corpo e esse corpo que a enjaulava não a merecia e era melhor que explodisse e definhasse e se encerrasse ali todo o sofrimento. Que assim fosse porque qualquer morte é melhor do que isso, essa existência que não se conhece nem se reconhece, que é apenas a matadora da liberdade, o assassino, o carrasco. Morre de uma vez. Mas nem pra isso tinha coragem, nem pra isso nem pra nada.
Nosso espírito
Apenas duas coisas são sagradas no reino dos homens: a linguagem e o corpo. Ela, porque é o barco que nos leva para além, que sempre nos levou e continua a levar, apontando e apanhando o que nossos braços são curtos demais para alcançar, pequenos demais para envolver; ela é, assim, como que o nosso maior órgão, maior até do que os olhos (que enxergam até o horizonte) e do que as pernas (que a todo lugar nos levam), pois só na linguagem temos o infinito. Ele, porque é o palco onde tudo acontece, a panela de pressão de onde sairemos nós mesmos; tudo o que é e onde tudo se encerra, pois nada acontece fora do corpo e nada está para além dele; e principalmente porque é no corpo que sentimos — — outros corpos (repare que a linguagem, por enorme que seja, não atinge outras linguagens, mas apenas atinge outros corpos, pois somente corpos são atingíveis). É nesse binômio corpo–linguagem que nos localizamos – nós, poetas! Nós, poetas: os aradores da única religião que sobreviverá ao futuro, a única religião que jamais existiu. Apenas duas coisas são sagradas no reino dos homens: a linguagem e o corpo.
Capítulo 3 — Milagre no expresso
Foi então que tomado de coragem se levantou de seu assento, sorrindo com uma leveza de criança, embalado naquela indiferença à própria vergonha que subitamente o arrebatara, e prefaciou sua fala cuja quentura já sentia na barriga com a pergunta: "Senhoras e senhores, vocês se incomodariam se eu invadisse o silêncio desse trem para ler uns trechos deste livro?" e tinha de ser econômico e direto, pois falar para um grande público, aquelas dez ou doze pessoas naquele vagão, requer destreza discursiva tal que não se deve alongar as frases e disso ele sabia bem, mas em seu coração se justificava (silencioso por fora) "é que tem beleza demais aqui e nada me daria mais prazer do que dividir essas belezas com vocês, estranhos que abençoam meu caminho" e em seu olhar se notava aquela audácia de ator mirim, orgulhosíssimo de sua própria interpretação, sorrindo no palco da vida, e naquele vagão pelo menos uma jovem e um idoso foram capazes de se emocionar com aquele olhar e positivamente acolheram-no com a cabeça; o restante dos passageiros manteve-se em silêncio mas isso era tudo de que ele precisava: bastava que não protestassem que, sabia-o, daria a si mesmo a permissão para começar seu doce espetáculo e, sem tomar fôlego, logo começou:
3 de fevereiro de 2017
Prescrição para quem sofre de pequenez aguda
Dicionários de si
2 de fevereiro de 2017
Das entranhas!
A poesia arranha a alma. Sim, meus caros, para ser poeta é preciso ter a alma arranhada. Têm certeza de que é isso o que desejam? Ora, de onde vocês achavam que vinha o sangue com que escrevemos?
27 de janeiro de 2017
Paciência, pero no mucho!
23 de janeiro de 2017
Prece tardia
22 de janeiro de 2017
Clara apologia
O motivo pelo qual tenho acordado de tão bom humor é que tenho sonhado. Coisa estranha aconteceu à minha amiga, que comigo experimentou a melatonina: teve pesadelos, horríveis pesadelos, e se arraivou de mim quando lhe contei que era esse um dos efeitos, e afinal motivos, da substância. Ocorre ser a melatonina, diferentemente de alguns remédios, não uma fuga mas o seu contrário: ajuda ela a não fugir dos sonhos (e, sim, também pesadelos), portanto, a não fugir de si. Com isso recebo ajuda para ir ao meu encontro. A melatonina é o meu óleo de coco.
21 de janeiro de 2017
Fala a alma de artista
16 de janeiro de 2017
Duas galáxias conversam
"Mas eu amo o teu fogo — quem não se queima não vive. Não confias na minha capacidade de sobreviver? Ora, achas-te tão maior que eu assim? Como poderei compartilhar contigo o que me dói, se nem a ti mesmo pareces aguentar?"
"Não nascemos para o fogo, querida. Poupo-te assim. Soframos menos."
"Claramente não entendes do sofrer. Vive e queima! — assim dita meu evangelho. Na vida não tenho medo senão de me acinzentar — nada que é vermelho me enfraquece. Acaso pensas que te amo as partes apagadas? Queima comigo, meu amor! É tudo que te peço. Do mundo faremos gloriosa fogueira."
"Tinha razão o sábio: diamante e carvão não se dão — pois embora os dois brilhem, só um sobrevive à combustão."
"Sinto muito. Vou."
"Eu mais ainda. Vai."
Gatunos na dor e no amor
As garras mais afiadas são retráteis. Duas lições há aí: primeira— mansidão é algo que se finge; segunda— arranhadores ferozes também acariciam.
13 de janeiro de 2017
Advinhar o mundo
Cartomantes do destino somos nós. Tecelões da realidade, costurando impressões — preguiçosamente curiosos somos nós, dos deuses roubando ~ aos homens e-levando. Poetas somos nós!, urubuzando os cientistas, apenas o suficiente para satisfazer-nos a alma. Filósofos somos nós, da barriga pensadores, ar negro expiramos conforme filtramos os brilhos — ex-cegos somos nós!, acavernados em nossa pequenez, de sombras gigantes os ventríloquos; em tudo bruxos, a tudo feitiços. Nossa incompreentude é nossa tolice favorita. Mas que seriam os grandes homens — sem nossa diversão?
Lição de a anos-luz
Não se preocupe com o brilho. Para ser estrela é preciso em primeiro lugar que exploda.
Caridoso com as próprias violências
Não sejamos duplamente maldosos: nós, que somos maus por natureza, devemos — em nome da bondade! — preservar nossa maldade. Amá-la! Com isso incentivamos a bondade nos bons, pois tudo que é fiel à sua natureza aumenta a esperança no mundo, mesmo quando pareça destrui-lo.
Melhor dizendo: mesmo quando o destrua.
Quando um mau censura a própria maldade, duas maldades foram cometidas. Fazer tanto o bem quanto o mal — sem censura! Essa é a nossa receita para um mundo que padece de insinceridade.
Melhor dizendo: essa é a nossa receita para um mundo que padece.